FICAR
FICAR
por Lílian Maial
Já que sou mãe de um casal de adolescentes de classe média, criados da mesma maneira, com o mesmo grau de liberdade, mas com personalidades e vivências de grupos distintos, achei por bem fazer uma pesquisa sobre o assunto, de maneira absolutamente empírica, baseada em relatos de adolescentes entre 14 e 19 anos.
Saí em campo perguntando e observando o que significa “ficar” para eles.
O mundo mudou bastante em 20 anos, mas certas coisas apenas trocaram de nome. No meu tempo de adolescente, o termo para “ficar” era “tirar um sarro”. E tirava-se sarros nas festinhas, nos cinemas, na saída da escola (às vezes dentro da escola), na rua, na chuva, na fazenda... E havia os que não tiravam, ou por convicção, ou por não terem par.
Era curioso observar os grupos nas festinhas. Pelo lado das meninas, havia as “assanhadinhas”, que se maquiavam, vestiam roupas ousadas, se enfeitavam mais, e eram as disputadas pelos meninos mais interessantes. Nesse grupo estavam as consideradas mais bonitas. Havia as “simpáticas”, que geralmente eram mais gordinhas, alegres, sempre com uma piada sobre tudo, comunicativas entre todos os grupos, bem-vindas no grupo dos rapazes. E havia as tímidas, que não eram necessariamente feias, mas que forçavam uma barreira na comunicação, fosse por não se arrumarem tanto, fosse por não saberem o que dizer na frente dos rapazes, fosse por não quererem mesmo envolvimentos fugazes.
Pelo lado dos rapazes, havia os “galãzinhos”, que eram os rapazes populares, bonitos, bem arrumados (o que hoje se chama de “mauricinhos”), disputados por meninas de todos os grupos. Havia também os “safados”, os meninos ousados, que sempre queriam tirar sarro com as garotas mais assanhadinhas. E havia os “nerds”, os meninos menos dotados de beleza física, mas extremamente inteligentes e mordazes. Não se importavam aparentemente com as gozações e estavam sempre em grupos de iguais. Notoriamente, os que “ficavam” eram as assanhadinhas com os safadinhos.
Hoje parece que a história se repete, embora as denominações sejam outras.
Aí entra a pesquisadora de araque aqui, para saber as razões de se “ficar” (vai aí uma observação interessante, de que a única coisa que essa relação não prega é justamente ficar. Quem fica, nunca fica, vai embora, não dura).
No grupo dos que ficam, as justificativas são variadas, mas sempre girando em torno da mesma coisa: consumo. Sim, consumo, uma necessidade quase compulsiva de experimentar tudo e todos na vida, antes que não sobre nada, ou que o mundo acabe, ou que se morra. Geralmente os jovens que optam por esse tipo de comportamento (nada de crítica aqui) possuem uma personalidade imediatista, algo hedonista, que já faz parte de sua formação, e se reflete nas escolhas profissionais inclusive. São rapazes e moças que têm uma visão da vida mais prática, buscando resultados mais instantâneos e sem grandes esforços. Costumam optar por carreiras que envolvam dinheiro, viagens, relacionamentos diversificados (comércio, turismo, microempresas, mercado financeiro, política).
Já os que não ficam, justificam sua opção como uma busca por uma relação mais estável, extraindo a satisfação a longo prazo, procurando a beleza externa (secundária) e a interna (prioritária), aliados a uma afinidade de objetivos de vida. Geralmente dão certo com colegas de turma, de cursos, vizinhos, enfim, pessoas cuja convivência vá mostrando o caminho. Mais propensos à timidez, introspecção, reflexão, responsabilidades desde muito novos. As profissões costumam ser as que exigem esforço maior para conquistar, ou seja, maior necessidade de estudo, dedicação e renúncias (medicina, engenharia, física, arquitetura, arte em geral).
Questionados sobre a falta da relação afetiva constante, os que não ficam por opção dizem sentir falta disso em determinados momentos, mas que são logo sublimados pela companhia agradável com os colegas (rapazes e moças) e a troca de afeto desinteressada. Não ficam, mas curtem carinhos, palavras de incentivo, contato próximo, embora sem a intimidade alcançada pelo outro grupo. Não quer dizer que não namorem, que sejam assexuados ou problemáticos, ao contrário, parecem ter esse lado bastante bem resolvido e, por esse motivo, fazem suas escolhas apenas quando estas lhes são atraentes num aspecto mais abrangente, e não pelo simples fato de ostentarem que “ficam”. Os que não ficam, são os que realmente ficam. São aqueles cujos namoros são mais longos e aparentemente felizes. Muitos deles evoluem para o casamento (não necessariamente o primeiro romance, é claro).
Os que “ficam” alegam que sentem impulso, que é gostoso experimentar todos os sabores, todas as texturas, todos os mistérios dos relacionamentos. Curtem seu corpo e o corpo do outro, gostam de explorar, são arrojados, mas não escondem a insatisfação do dia seguinte, o vazio. Beijam muitos, e não têm nenhum. Não contam com nenhum. Por um lado apreciam essa liberdade toda e essa facilidade de estarem com quem escolhem, mas por outro chegam a ser compulsivos na busca do ideal. Muitas vezes não percebem que o ideal pode estar bem ali, naquela boca já beijada e descartada. Talvez (eu não sou psicóloga) esteja aí uma certa imaturidade afetiva, que, pela liberdade que a juventude atual tem de se mostrar sem tabus ou preconceitos, descamba para uma perseguição inconsciente pelo príncipe (ou princesa) idealizados na infância. Como a micro-sociedade deles (os jovens) não sabe como lidar ainda com isso (com receio de pagar mico), preferem descartar logo, antes que o par torne-se um “grude” indesejável. E aí, perdem a chance de conhecer pessoas incríveis, talvez companheiros para toda a vida.
Você vai me perguntar então, qual a melhor opção, se ficar ou não ficar. E eu, em minha parca experiência e observação, responderei que não há melhor opção. Há melhor momento, e há a personalidade de cada um. O “ficar” do jovem tem muito a ver com a traição dos mais velhos, guardados os motivos de cada situação. Mas observa-se que homens e mulheres adultos com aquela compulsão pela traição, como se não conseguissem não trair, têm muito em comum com o jovem que “fica”, e não consegue, de verdade, ficar. Aparentemente há ligação com a dificuldade de entrega, com a dificuldade de compartilhamento, com uma dificuldade interior de obter prazer. Esses têm a nítida impressão de que o próximo parceiro será o ideal. E saem desesperados à sua procura, muitas vezes a vida toda. Note-se que não estou colocando isso como regra, e nem poderia, pois não sou abalizada para tanto. Apenas trabalho com a observação e com meu conhecimento de psicologia médica, de leitora contumaz de psicologia para adolescentes (sou mãe de dois) e de conviver bastante com adolescentes, pacientes e suas famílias (sou médica), casais em crise, enfim, uma gama bastante considerável e diversificada de pessoas com todo o tipo de conflito.
Não há erro em se ficar ou não ficar. Não há crítica e nem preconceito, tanto para um lado, quanto para outro, e nem há diferença entre rapazes e moças. Apenas uma coisa interessante que observei entre os rapazes que conheço, é que eles se referem às meninas que “ficam” de maneira pejorativa entre eles (falando português claro, consideram-nas machistamente como piranhas – isso dito por vários deles e insinuado por outros). Já as meninas referem-se aos rapazes que “ficam” como sendo “galinhas”, sem que com isso haja uma intenção pejorativa em sua masculinidade, ao contrário. Portanto, nós, mulheres, apesar de toda uma revolução feminista, iniciada com a geração que me antecedeu, continuamos vítimas de chavões machistas, quando fazemos nossas escolhas diferente dos padrões ditados por eles. Felizmente também, saímos da casca e já somos independentes financeiramente, auto-suficientes em termos políticos, culturais, trabalhistas, em condições de gerir nossa própria vida e, por conseguinte, arcando de cabeça erguida com todos os nossos atos.
Em resumo, meninas que gostam de “ficar”, que nunca se deixem menosprezar por isto. E as que não gostam, que não se sintam “diferentes” por preferirem assim. Assumam-se como mulheres livres para optar por seus caminhos.
Rapazes que “ficam”, se a escolha é sua, que continuem ficando com a consciência tranqüila de não esconderem suas intenções. Se não ficam, que não temam por sua opção, como se isso fosse uma aberração.
Cada um é o que é, e o faz melhor quando se enfrenta e se orgulha do que faz e do que é. Só assim, assumindo sua identidade, seja homem ou seja mulher, encontrará a estrada que levará à sua satisfação pessoal. Não importa se você fica ou não fica, desde que sua opção não lhe traga conflitos ou violência interior.
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Lílian Maial
Enviado por Lílian Maial em 18/12/2005