Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Meu Diário
22/12/2007 18h08
O "BOLSA-ESTUPRO"

Lílian Maial



Eu já escrevi sobre o "Estatuto da Igualdade Racial", descalabro governamental com apoio de algumas entidades, num ato de retrocesso, incitando ao “appartheid” brasileiro. Mas agora as coisas estão tomando um rumo muito mais perigoso. Estamos diante da volta ao cerceamento das liberdades individuais, da volta à repressão, à censura, numa tentativa de “consertar um erro” com outro pior, mais grave e mais significativo.

O Projeto de Lei n°1763/2007, que cria a ''bolsa-estupro'', para evitar que mulheres abortem, é um absurdo, um atentado ao pudor! A proposta está em tramitação no Congresso, e prevê pagamento pelo Estado, por 18 anos, de um salário mínimo mensal às mulheres vítimas de estupro.

O aborto, em tais casos, já é permitido, no Brasil, desde o Código Penal de 1940 – só que ninguém obedece e, quando a mulher é liberada para o aborto, na maioria das vezes, a criança já nasceu (e, se bobear, já estará maior de idade, servindo, caso não tenha morrido na miséria e no desamor de um filho não desejado, resultado de uma das inúmeras violências cotidianas a que somos – independente de sexo – expostos como brasileiros).

O "bolsa-estupro" pretende, nas palavras dos autores do texto, os deputados Henrique Afonso (PT-AC) e Jusmari Oliveira (PR-BA), "dar estímulo financeiro para a mulher ter o filho". O relator, José Linhares (PP-CE), padre da Igreja Católica, deu parecer favorável ao pagamento da mensalidade...

Ora, não se trata de calar a boca da mulher vítima de violência, muito menos de “alimentar” (com um salário mínimo) o filho do crime hediondo. Trata-se, isso sim, de um retrocesso nas lutas pelos direitos femininos, como os dos negros, no tempo do escravagismo. Trata-se de uma vergonhosa proposta de incentivar, ao contrário, o descontrole de natalidade, para criar uma nova China inflada de miseráveis. Trata-se, de forma indireta, de incentivo ao estupro!

Se isso passar, estará atestada a incompetência ampla, geral e irrestrita do governo federal, estadual e municipal. Nossos representantes na Câmara e no Senado coadunando com a violência maior, que é o vilipêndio em troca de esmolas, mais uma vez.

Isso sem falar no lucro que tal bolsa deverá gerar para “não se sabe quem”, porque uma criança não sobrevive bem apenas com um salário-mínimo, mas alguns (políticos) certamente depositariam muitos dólares e euros em contas no exterior.

Como diz o Dr. Aníbal Faúndes - especialista em obstetrícia, professor titular aposentado da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e coordenador do Comitê de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo): -”Não tenho dúvida de que o zigoto [primeira célula da fertilização] não tem o mesmo direito da mulher".

Com ele partilho a noção de que há necessidade de descriminalizar o aborto, associada a políticas mais eficazes de métodos contraceptivos e de controle familiar, e de que o dilema de ser a favor ou contra é falso, porque a maior parte das pessoas, senão todas, é contra o aborto, inclusive a mulher que o faz. A solução não é condenar a mulher. Se fosse, nenhum aborto seria praticado, mas não é o que se vê. A pergunta é: por que se condenar apenas a mulher, e não o homem, que muitas vezes, abandonando a mulher, a obriga a ter que interromper a gravidez? Por que quem deve pagar a conseqüência é só a mulher pobre, já que a mulher rica tem um aborto seguro, em clínicas como a dos países desenvolvidos?Por que insistir em não enxergar que as complicações do aborto saem muito mais caras do que o aborto seguro, feito no hospital, tanto para a mulher, quanto para o governo, quanto para a sociedade em geral?

Não há que se criar “bolsa-estupro”, mas se intensificar e levar com seriedade a educação sexual nas escolas, a igualdade de poder de decisão entre os sexos, plena informação e acesso aos métodos anticoncepcionais, além de proteção da mulher que queira ter o filho.

Se uma funcionária engravida, perde oportunidades, não é vista com bons olhos e, quando volta, é demitida pelos patrões, notadamente aqueles contrários ao aborto. Não é irônico?

Escolas católicas não acolhem meninas grávidas, porque é um mau exemplo. Indiretamente ensinam que, para estudar, têm que abortar!!!

E a mulher que já tem filhos, é casada, mas tem de trabalhar para poder manter a família? Se engravidar, ou fica com o bebê ou mantém o emprego.

O mais estranho é que é aquela pessoa que se declara contra o aborto, a que mais se opõe a todas as medidas que o reduzem. São contra o DIU, a pílula, contra a educação sexual nas escolas, contra a divulgação na imprensa televisiva.

Se as pessoas imaginam que, pelo fato de a lei não condenar, a mulher vá preferir fazer o aborto para evitar a gravidez, é pensar de maneira bastante leviana sobre a mulher. Ela não gosta de abortar, ela sabe dos riscos. Se o faz, é porque não tem alternativa.

No caso de legalização do aborto, nas classes altas a situação seria quase a mesma, uma vez que ela já faz um aborto seguro. Já a mulher pobre, sobretudo adolescente, poderá fazer um aborto em vez de ter um bebê não desejado, ou ter sua vida ceifada nas mãos de curiosas ou similares.

Cada indivíduo deveria ter autonomia para tomar sua decisão, direitos de tomar posições sobre sua conduta. Como se propala, o direito de cada um termina quando começa a infringir o direito do outro. E, na questão do aborto, estão o direito da mulher sobre o seu corpo e os direitos do embrião. E este, um conjunto inicial de células, não tem o mesmo direito da mulher. Ninguém pode determinar em que momento eles começam a ter direitos semelhantes. O que se propõe é uma similaridade em relação à morte cerebral marcando o fim da vida. Assim, o início da vida é marcado pela atividade cerebral. E, definitivamente, não há relação entre neurônios até 12 semanas de gravidez.

As entidades de defesa da mulher lutam contra o “Bolsa Estupro” de maneira ferrenha, considerando como algo, no mínimo, deplorável e ,no máximo, de uma atitude vil e selvagem, assim como o criminoso que perpetra tal crime.

O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) protestou contra o projeto-de-lei 1763/2007, e aprovou, por unanimidade, uma carta de repúdio ao projeto, que foi entregue ao seu relator na Comissão de Seguridade e Família, pela representante da Rede Feminista de Saúde no CNDM, Lia Zanotta. A carta também foi protocolada na Secretaria da Câmara e distribuída aos demais deputados da comissão. Conforme expresso no conteúdo da carta, o projeto está em contradição com o Código Penal de 1940, que garante a interrupção voluntária da gravidez, em caso de estupro; com a Norma Técnica do Ministério da Saúde, que assegura esse direito; com a Constituição de 1988, e com as reivindicações das mulheres construídas democraticamente e referendadas nas duas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres.

O documento lembra ainda dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nas Conferências do Cairo (1994) e de Beijing (1995).
“A Constituição Brasileira estabelece que ter filhos é uma decisão da cidadã e que o estado deve fornecer os meios necessários para que se possa exercer esse direito com dignidade. Isso não se garante com um salário mínimo, conforme previsto no PL em questão”, destaca a carta.

É preciso que se pense em como uma mulher luta penosamente na vida para trabalhar, ganhar seu sustento, ter uma vida e, de repente, por um ato hediondo, ter sua vida totalmente modificada à sua revelia, recebendo um dinheiro que irá integralmente para esse filho indesejado, lembrança eterna de tal ato, além de nunca mais se sentir à vontade com outro homem na hora do sexo. E, pior, a lembrança do estupro toda vez que olhar para aquela criança, sem falar no que dizer, quando a criança perguntar quem é o pai.

Esse é um projeto descabido, irracional e perigoso. Nenhum país no mundo possui tal barbaridade. Isso é uma falsa caridade com dinheiro de nossos impostos! Esses parlamentares aproveitam para inventar projetos ditos sociais, com finalidades escusas.

Não podemos deixar que isso aconteça, sob o risco maior de ter nossa segurança física e ideológica atrelada ao poder dos dribles dos que deveriam ser nossos representantes, mas que só representam o absurdo de seus próprios pensamentos toscos.




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Publicado por Lílian Maial em 22/12/2007 às 18h08



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