Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Meu Diário
10/07/2007 21h20
TSUNAMI
®Lílian Maial


O dia amanheceu claro e azul, não cinzento e nebuloso, como era de se esperar, diante da dor e da lamentação. Não! Pássaros ousavam cantar, desobedecendo ao silêncio de luto que todo final de amor deveria merecer. Não era um réquiem, mas uma alegre brincadeira nos galhos da manhã.

Por que não chovia e trovejava?

Afinal, corriam rios de lágrimas pelos olhos de Marilda, cujo coração fora devastado por uma onda gigante de maldade, e a mente dilacerada por pensamentos contraditórios, que a conclusão alguma chegavam.

Era o fim, ela sabia que era o fim, mas não entendia a razão. Tudo parecia tão bem entre eles, então por quê?

Marilda conheceu acidentalmente José Eduardo nos corredores da empresa de advocacia na qual trabalhava, quando ela distraidamente derrubou uma pilha de processos que ele carregava. Após vários pedidos de desculpas e uma ajuda a empilhar novamente os processos, ela sai apressada, com a sensação de que já havia visto aquele homem antes.
Dias depois, para sua surpresa, o tal homem instala-se numa mesa próxima à sua, como auxiliar de escritório de um advogado rival.

Começaram a conversar ocasionalmente, pois costumavam chegar cedo, quando ainda não havia movimento no escritório.

Depois de algumas semanas, José Eduardo já fazia parte do seu círculo de amigos, apesar de não ser advogado. Marilda nunca escolhera suas amizades por cargo ou posição social, mas sim pelo que a pessoa trazia de bagagem emocional, de bondade e de caráter.

Um belo dia, após a conversa matinal, Marilda descobre um bilhete em sua mesa, de letra não identificada, com uma declaração de amor escrita de maneira bem simples, porém de uma sinceridade tocante. Percebe que só poderia ser de alguém dali do escritório, e olha na direção de José Eduardo. Imediatamente verifica que foi ele, e o chama para uma conversa. Explica sua situação, seu estado civil e seu perfil leal, afastando qualquer possibilidade de envolvimento, sem, contudo, deixar que ele se sentisse preterido por sua condição social.

Ele se afasta e mantém a distância, porém insistindo com olhares indecifráveis.

Marilda passou a se incomodar com aquilo, mas também a sentir falta, quando percebia que ele não a estava olhando.

Um belo dia, o homem desapareceu e Marilda notou que sentia falta não do auxiliar de escritório, mas do José Eduardo.

Procurou saber o que havia acontecido, mas ninguém sabia informar.

Depois de duas semanas de saudade, ela pede a transferência do moço para seu gabinete e assume, para ele, a falta que sentiu.

Iniciaram, então, um romance clandestino intenso e conflitante, pois as diferenças eram inúmeras, e ele se sentia muito mal com cada uma delas, mesmo ela não dando valor.

E a coisa foi caminhando, e o amor florescendo lindo, forte, profundo.

Mas nada é como parece ser, e José Eduardo começou a colocar as manguinhas machistas de fora, a implicar com roupas, maquiagem, amizades e até compromissos de trabalho de Marilda.

Esta, por sua vez, sentia-se perturbada pela quantidade de tempo ocioso de José Eduardo, que parecia não se interessar em estudar, em progredir, e ficava tempo de mais com a esposa, ao contrário de Marilda. Ela morria de ciúme da mulher, mesmo percebendo que a tal não era páreo para ela, mas sentia o ciúme corroê-la por dentro.

José Eduardo acomodou-se à situação de ter uma esposa dedicada e uma amante apaixonada, ambas sob seu controle.

Êpa! Marilda não era mulher de ser controlada por homem nenhum, e começou a deixar isso bem claro. E aí começou o fim. José Eduardo passou a agredi-la de todas as maneiras, com palavras duras ou silêncios inexplicáveis, passou a cerceá-la em todas as suas atividades e a colocar condições para continuar a relação.

Ela, cega de amor e compreendendo as dificuldades pela diferença social e cultural, cedeu em muitas coisas, mas ficava infeliz e frustrada a cada nova agressão, como se todo o seu sacrifício em abrir mão de amigos, compromissos e atividades prazerosas não valesse nada.

Ela fazia tudo isso consciente de que era em prol de algo maior e muito mais gratificante, só que esse “algo maior” não estava mais preenchendo todos os critérios, principalmente critério “felicidade”.
Marilda não era mais feliz. Tinha, sim, momentos de profunda satisfação, quando José Eduardo se entregava a ela de corpo e alma, mas esses momentos eram cada vez mais raros e mais breves, e ele logo dava lugar ao José Eduardo cruel, rude, sarcástico e descompromissado. Sim, era isso! Parecia que ele não tinha mais compromisso algum com esse amor. Era como se ele quisesse todo o tempo provocar Marilda para que ela o deixasse, ou um teste, para ele se assegurar de que ela nunca o deixaria.

Porém, ele não contava com uma coisa: Marilda era uma mulher forte e de princípios sólidos, que aceitou tudo o que não concordava por amor, por compreender que nem tudo era alegria numa relação, mas não poderia suportar maus tratos por muito tempo.

Tudo o que ela precisava, seu combustível, era carinho, palavras meigas, mimos e paparicos de uma pessoa apaixonada para outra. Mas isso havia acabado. José Eduardo havia se transformado num homem duro, insensível, malvado.

Não havia mais motivos para continuarem, contudo ela o amava e acreditava que fosse uma fase e que iriam superar.

Até que um dia ela o pegou numa mentira por nada, sem razão, assim, mentir por mentir, e percebeu como era fácil e simples para ele mentir sobre qualquer coisa, qualquer assunto.

De repente, veio a sombra da dúvida: o que teria sido verdade e o que teria sido mentira naquele ano inteiro de relacionamento? Compreendeu, então, que nunca saberia.

Será que ele agia daquela maneira, inquirindo sobre tudo, se aborrecendo com qualquer programa que ela fizesse sem ele, acusando-a de mentirosa, enquanto que era ele quem mentia?

Será que não era ele quem traía e se comportava com agressões para que ela não se sentisse tentada?
Será que não era simples insegurança dele, por ter uma mulher como ela apaixonada por ele, e pelo medo dela se voltar para alguém que a valorizasse mais? Se fosse isso, mal sabia ele que Marilda era uma mulher fiel, entregue, apaixonada, que só precisava do carinho de seu homem para ser feliz.

Contudo, para se amar alguém, é necessário que se ame a si mesmo em primeiro lugar, e isso significa se sentir livre para realizar os sonhos e projetos de vida. Não se pode trancar uma pessoa numa gaiola, mesmo que de ouro, e esperar que ela fique feliz de saber que seu carcereiro a ama. Isso não é amor, pois o amor implica em se querer ver o outro feliz. Ninguém é feliz preso contra a vontade. Você pode e deve querer estar feliz ao lado do outro, mas nunca trancafiado na desconfiança.

Marilda ainda tentou contemporizar e levar a relação adiante, mas José Eduardo passou a estragar todos os encontros com agressões verbais, insinuações, culminando com xingamentos, o que matou a alegria, inocência e espontaneidade do sentimento.

Como amar e viver com alguém que não a respeita, não a valoriza?

Ela percebeu que ele não suportava a mulher que ela era, embora a quisesse muito, ou, por que não, quisesse ser como ela?
Enfim, ele não aceitava sua liberdade, mas queria ser livre.

Ele queria relatório diário de suas atividades, mas pouco contava do seu dia, dos telefonemas que recebia, dos planos para os finais de semana. Ela acabava sabendo das coisas bem depois, e ele achava certo, mas não perdoava quando sabia das coisas dela também depois.

Enfim, eram dois pesos e duas medidas. Ele se perdoava e sempre tinha explicação lógica para tudo, mas ela não, ela era falsa, mentirosa e misteriosa. E ela estava cansada de tudo aquilo, e resolvera dar o basta.

Naquela manhã clara e azul, que deveria ter nascido cinzenta e nebulosa, Marilda assumiu seu grande amor por si mesma e pela vida, e parou de regar a planta do amor. Se José Eduardo não regava, não seria ela a única a cuidar da plantinha.

Se ele não se mexesse para salvar a relação, dando a ela amor, carinho e respeito, apoio, compreensão e cumplicidade, companheirismo mesmo, não valia a pena abandonar-se por nada.

Chorou tudo o que precisava chorar. Chorou tanto, que inundou o peito e devastou, como Tsunami, as esperanças, os sonhos e projetos de vida com aquele homem.

O que restou, depois do dilúvio, foi uma mulher enfraquecida, machucada, coração dilacerado, mas certa de que se reconstruiria e faria das cicatrizes verdadeiros monumentos de amor.

Sabia que dos escombros se ergueria nova mulher, mais forte, mais segura, mais feliz, e novamente pronta para amar, e isso foi a herança que José Eduardo lhe legou – a capacidade de amar de novo – além da convicção de que ela era o objeto principal de seu próprio amor.

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Publicado por Lílian Maial em 10/07/2007 às 21h20



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