Recolho-me ao abstrato
I.
Recolho-me ao abstrato dessa parede.
Quadros, fotografias, memórias...
Nada traduz o minuto!
A morte encerra todos os ciclos.
As dores se vão e, em seu lugar, a salvação.
Não sei o que ela tem de tão apavorante.
Seja bem-vinda, pois!
2.
Não! Não me ronde!
Tenho muito medo!
O que será de minhas plantas, quando eu me for?
E todos os versos que ainda não passei para o papel?
O que acontecerá com meus pertences, os bilhetes guardados de amor, as pequenas recordações de viagens, os batons preferidos?
Olhando bem para as paredes do meu quarto,
ainda há espaço para pendurar incertezas.
Uma cortina de “voil” baila na penumbra, pequena barreira de esconder saudades.
Os velhos livros me observam.
Não cumpri a promessa de lê-los todos.
Algo de chamamento nas lombadas enfileiradas.
Pairo sobre um livro de poemas de um tio-avô (sim, está no sangue), e penso que ele tenha se tornado imortal naquelas páginas.
Alento.
3.
A misteriosa dama chega cada dia mais perto. Seu manto de sombras a deixa imperceptível.
Só poetas a percebem - a agonia dos bardos!
Ninguém mais acredita nela, ou tem tamanha intimidade.
Ela sorri.
Zomba de meus tolos versos.
Mostra a carga viral de sua foice,
Que já levou tantos incrédulos.
Muda de lado.
Mostra a navalha que corta as artérias dos inocentes.
Ela não sabe o que faz.
4.
Levanta-se de súbito.
Não! Ainda não! Tenho tantos planos por concluir!
Será assim?
Tudo inacabado, interrompido.
Minha ansiedade não permite.
Ela terá de esperar.
5.
Enquanto isso, na rua em frente,
uma animada festa desafia os decibéis da solidariedade com os reclusos.
O ponto alto da cidadania.
Essa tarefa não terei tempo de acabar.
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