Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Meu Diário
26/05/2007 20h36
SE O PROBLEMA DO ABORTO NÃO ESTÁ APENAS NELE, VAMOS ENTÃO VER ONDE ELE ESTÁ?
Lílian Maial


Nosso caro colega Arthur da Távola acabou de postar um artigo em outro sítio, onde diz que o assunto “legalização do aborto” nada tem a ver com a Presidência, mas com o Congresso. Eu discordo, e gostaria de tecer algumas considerações, apenas a título de expandir as idéias, sob um outro prisma.
É assunto do Congresso sim, porém o resultado disso é assunto social, assunto de mortalidade feminina, assunto de saúde pública, assunto de miséria, e isso é assunto da Presidência. O foro íntimo individual (feminino!) é inquestionável. Já quanto à sociedade, na minha opinião, é absolutamente secundário, pois que a mesma varia de acordo com a moda e com a mídia.
Essa mesma sociedade vive reclamando que a idade mínima para a aposentadoria foi elevada, mete o malho no governo, se descabela, mas não toma uma única atitude. Essa mesma sociedade assiste, inerte, a incêndios de seus ônibus, a assassinato de seus filhos, ao roubo escandaloso do dinheiro público, tudo em absoluto silêncio.

Eu não creio que a questão seja ser contra ou a favor do aborto em si, que isso sim é de foro íntimo, mas em ser favorável ou contrário à sua legalização, ao direito de se optar por ter ou não ter um amparo médico, quando a decisão de abortar já está tomada. Sim, porque uma mulher que esteja decidida a abortar, quaisquer que sejam os dispositivos legais, vai abortar. Depois da decisão tomada, não há lei que a faça voltar atrás. E isso vem de milênios. É desinformação tentar dizer o contrário.

É impressionante que, depois de tantas batalhas arduamente ganhas em favor dos direitos da própria mulher, depois de tantas transformações que a sociedade finalmente vem sofrendo, em virtude de ações de grandes mulheres, dentre elas Betty Friedan, recentemente falecida, uma das responsáveis por eu e a maioria das mulheres estarem aqui hoje, debatendo em pé de igualdade com os homens qualquer tipo de assunto, a sociedade e até muitas mulheres ainda serem capazes de atitudes retrógradas, que procuram manter a mulher à mercê do poder masculino.

Não pensem - aqueles que são radicais - que a legalização aumentaria os índices de aborto. Não! A legalização apenas conferiria às mulheres de baixa renda o direito de ter amparo médico em sua decisão. Sim, porque as de classes mais abastadas o fazem em ambiente seguro, com médicos, anestesistas, enfermeiras e acompanhantes. Só as miseráveis, que não podem pagar por uma clínica clandestina (que é clandestina só para inglês ver), é que sofrem dores, riscos, morte.

A legislação brasileira não circunscreveu esta matéria bastante bem, como cita o colega. Ela é segregadora, limitante, excludente e machista. Limita o ato apenas a grávidas por estupro (que quando chegam a conseguir a permissão para o aborto já deram à luz) e nos casos de imperfeição genética, desde que esta venha a provocar a morte do feto, atestada por inúmeros especialistas, quando a barriga já está volumosa e a criança mexendo, traduzindo, aí sim, uma vida, dificultando a escolha da mulher. Exclui as que não desejam a gestação. É machista, porquanto homens decidem sobre o que não arcam depois. Um absurdo, uma vez que o Estado não garante a subsistência das crianças geradas contra a vontade da mulher, e muito menos às crianças deficientes!
Basta olhar nas ruas e nas instituições. Antes de se empunhar a bandeira pelos que sequer enxergaram o mundo ainda, deveria ser levantada uma bandeira para livrar os já nascidos da miséria, da sevícia, da falta de esperança, das drogas, do crime e do apodrecimento da infância.
Que se fale em preservação da vida na hora do descaso, do preconceito, do virar as costas às crianças de rua, no subir rapidamente o vidro do carro, com a menor sensação de sua aproximação, ao dar esmolas aos equilibristas da fome, que os divertem nos sinais de trânsito, ou os constrangem.
Que se fale em preservação da vida daqueles que só esperam a felicidade na morte.

Concordo inteiramente, como médica, que o que mais precisa acontecer no Brasil é um mega projeto de planejamento familiar, com educação das meninas e meninos desde a pré-escola, de maneira séria e insidiosa, até o segundo grau. Que sejam distribuídos gratuitamente preservativos masculinos e femininos, com as devidas orientações de uso, e os contraceptivos. Mas isso, apenas, não afasta o problema da gravidez indesejada.

O cerne do problema da legalização do aborto está, a rigor, na mortalidade e morbidade feminina, além da citada procriação inconseqüente. O planejamento familiar livre e consciente, sem dúvida alguma pode atenuar a tragédia a médio e longo prazos, mas não a elimina, muito menos a curto prazo.

O mais importante de tudo: ser contra a legalização do aborto não diminui a quantidade de crianças abortadas, apenas aumenta o número de mulheres que morrem por não terem tido a chance de ir a um hospital fazer tal aborto, sendo submetidas a verdadeiras chacinas por curiosas ou clínicas clandestinas, que invariavelmente deixam seqüelas físicas ou, pior, morais.
Ser contra a legalização do aborto modifica, sim, os índices de mortalidade infantil, mas a mortalidade pós-natal, por sofrimento absurdo causado pela fome, pela miséria, pelo desamor da mãe (que não desejava o filho), pela sociedade – a mesma que foi contra o aborto - que sempre o considerará um bastardo, um marginal.

As demais formas de aborto realmente são um assassinato, mas um assassinato das mulheres pobres, as que provocam em si mesmas a expulsão do embrião, ao introduzirem em seu corpo arames de cabide, talos de mamona e outros materiais de toda sorte, com conseqüentes perfurações de útero, intestino, bexiga, peritonite, com seqüelas muitas vezes irreversíveis e até morte. Isso é assassinato! Porque a grande maioria poderia ser evitada, se a legislação retrógrada e a sociedade hipócrita não varressem para debaixo do tapete a certeza de que isso existe.
Nas clínicas clandestinas isso não acontece, mas só para as que podem pagar, e bem.
Dizer que a situação é do âmbito policial e da precária vigilância sanitária é colocar venda nos próprios olhos e nos da nação. Uma visitinha de 24 horas nos Pronto-Socorros mudaria a visão em dois tempos.

Ser contra ou a favor da legalização do aborto é ser contra ou a favor da mulher ter direitos sobre seu próprio corpo, seu destino, suas escolhas. Antes de levantar a bandeira da defesa de embriões, por que não defender menores de rua? Por que não trabalhar em causas sociais de recuperação de delinqüentes? Não querem respeitar a vida? Por que somente a vida intra-útero de conceptos de mulheres que não os desejam?

Ser contra a legalização do aborto hoje em dia significa muito mais ser a favor da criminalidade e do aumento do número de infelizes.

O mais interessante é que as pessoas que são contra a legalização do aborto são favoráveis, na maioria das vezes, à pena de morte de menores criminosos. Ou são favoráveis a deixá-los bem distantes de seu caminho. Ou a baixar a idade penal mínima.

E o mais triste disso tudo é ver uma mulher ser contra os direitos das outras, que a duras penas vêm lutando e se expondo para que a miséria, a criminalidade e a injustiça social sejam reduzidas.

Eu convivo no meu dia-a-dia com as mulheres que chegam com hemorragias, infecções, perfurações de útero, de intestino, em virtude de abortos provocados em circunstâncias desesperadas.
Convivo com mães que não entendem a razão de uma filha sua ter feito um aborto, quando elas mesmas pregam a independência, a prevenção, o uso obrigatório de preservativo. Só que parece que essas mães, assim como nossa sociedade impiedosa, não sabem da realidade masculina de não aceitar o uso dos preservativos, com a velha desculpa do "chupar bala com papel".
- "Dê um fora no cara que não aceita!" - dirão alguns. Mas elas, as que dizem isso, na hora H aceitam... É muito fácil condenar os outros, melhor ainda, as outras.

Há sim formas perfeitas de resolver esse conflito, bastando para isso a legalização do aborto em hospitais públicos, clínicas e maternidades, associada a um planejamento familiar e educação sexual nas escolas, de caráter sério e valendo nota. Mas aí é outro problema, pois agora as crianças nem podem mais ser reprovadas...

Não estou aqui querendo convencer as mulheres a abortar. Não estou fazendo campanha para que todas as mulheres abortem. Não sou favorável a abortos em massa. Queria apenas sensibilizar as pessoas de que a mulher tem o direito de ter assistência médica, como qualquer ser humano, na hora em que decidir não levar uma gravidez em estágio inicial adiante.

Concordar ou não, também é direito de cada um.

Em tudo o que foi exposto, a frase mais marcante e menos levada em consideração é: “estou convencido de que é dela (da mulher) a última palavra”. Isso é tão óbvio, que chega a ser engraçado. De quem mais deveria ser a última palavra, se o corpo é da mulher?


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Publicado por Lílian Maial em 26/05/2007 às 20h36



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