Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Meu Diário
11/03/2007 13h40
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Lílian Maial



Quisera ter o dom do entendimento do ininteligível, da intimidade com os sentimentos humanos, da habilidade de driblar questões de ordem no coração. Não precisava ser profética, ou milagreira, apenas poder compreender o fluxo dos pensamentos e sentimentos, e conseguir filtrá-los.

Aonde é que se muda de repente? O que se faz de um dia para o outro, que nos afasta tanto das pessoas que até ontem conviviam conosco? De um dia para o outro se deixa de ser o que se era ontem? Por que diabos todos desaparecem? Qual a razão de longos dias em silêncio, extenuantes horas de espera pelo que não vem?

O tempo passa. Ponto. E nós passando, nos esvaindo, atordoados com o mundo que nunca nos interessou antes, mesmo sendo preocupados com as coisas do mundo o tempo todo.

Vivemos num mundo reservado para famílias, casais com filhos, vida tradicional, preocupações rotineiras, ansiedades corriqueiras, bandeiras hasteadas pela justiça, pelo equilíbrio, pelo meio ambiente. Não sabemos da existência de outro mundo, um mundo paralelo, onde, de súbito, você é jogado sem querer e sem saber como se defender. Um mundo onde precisa disputar espaço, atenção, amor, companhia. Mendigar olhares e gestos. O curioso é que antes se vive sendo convidado para novas aventuras, parceiros de momento, companhias que não se precisava e não se quer. E de repente, do nada, esse vazio.

As pessoas deveriam receber um manual de separação, ou fazer “curso de separados”, como fazem “curso de noivos”.

O casamento é um baque, uma reviravolta na vida dos recém-casados, que deixam o ninho e voam com suas próprias asas, mas juntos e para uma vida que escolheram, que sonharam. Então se ajudam, se cuidam, se completam, mesmo nas dificuldades.

E os separados? O impacto é muito maior, pois eles eram o ninho. E o ninho acabou. E aí? Para onde voar? Onde depositar os sonhos, as construções, os alvos, os planos de futuro? O que fazer das lembranças, das fotos, das viagens e os lugares visitados, das datas comemorativas, dos aniversários, das simples, mas fundamentais e aventureiras idas ao supermercado para as compras de mês? O que fazer nas noites de tempestade, de medo e de dor, nos dias acamados, nas tardes enfermas, nas madrugadas insones?

Ah! Deveria existir um “manual de saudade” ou “tudo o que você queria saber sobre separação, mas sempre teve medo de perguntar”. E eu pergunto: por que tanta gente buscando tanto, e tanta solidão ao cair da tarde?

As coisas deveriam ser contratuais sim, mas não só separação de bens, mas separação de almas, de corações e de vida. Deveria vir explicadinho como as coisas ficam depois. Como são as etapas. Deveriam vir os diagnósticos diferenciais, se cada sentimento, cada reação é normal, ou é mico, ou paranóia, ou reação esquizóide, ou TPM, ou ciúme, saudade, imaturidade, medo, costume, vazio no peito, tristeza, luto, alívio... Seria mais fácil administrar tantas contradições, se alguém nos contasse por que não aparece ninguém na sexta à noite, ou por que não há programas para sábado, ou por que os Domingos ficam tão longos, depressivos e sem graça.

As pessoas não estão preparadas para perdas, sejam elas quais forem. E não há cartazes em cada esquina apontando o endereço dos “S.A” (separados anônimos), ou “D.A.” (divorciados anônimos), onde se deveria aprender a viver um dia de cada vez, trabalhar um sentimento de cada vez, equilibrar as emoções e entender que só depende da gente mesmo “não beber o primeiro gole” de tristeza.

Perder é ruim, é difícil. Separar é rotura, é cisão. É uma mastectomia de corpo inteiro, seguida de radioterapia de choque, e quimioterapia por alguns anos, com todas as suas seqüelas temporárias e algumas permanentes. Mas... Há luz no fim do túnel, e se consegue sobreviver. E se existe a reconstrução mamária, por que não reconstruir esse imenso naco de vida amputada? Não há prótese, mas há sol, há o mar, há os sorrisos dos filhos, há a palavra: “essa coisa toda minha, que ninguém mais pode ser”, como diz Vinícius, em “Minha Namorada”. Namorar a palavra, noivar com o pôr-do-sol, tornar-se amante das ondas e conchas do mar. Deixar baixar a maré e perceber que nunca se deixou de ser rochedo.

Enfim, quisera poder ser doutora, entender de todos os males que afligem ao homem, mas tudo o que aprendi estava escrito nos livros e nos olhos, e estes piscam...

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Publicado por Lílian Maial em 11/03/2007 às 13h40



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