Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Meu Diário
16/02/2007 10h13
O CARNAVAL
Lilian Maial


Muito já se falou sobre o Carnaval. Festa de um povo, alegria da comunidade, momento para o exibicionismo dos mais abastados, furor jornalístico, modismo, fonte de recursos turísticos, e muita coisa mais.

Mas pouco se diz sobre o significado individual do Carnaval, sobre os sentimentos, as emoções da festa, os preparativos, que duram um ano, e que se desfazem em quatro dias.

O Carnaval começa na Quarta-feira de cinzas, para a maioria dos organizadores, diretores de escolas de samba, músicos, criadores de enredo. Para o verdadeiro carnavalesco, a Quarta-feira não significa o fim do Carnaval, mas o instante de começar a pensar no próximo enredo.

É isso. É uma energia circulante, uma onda interna que se move, que não tem chegada e nem saída, porque está dentro do folião. É uma coisa meio irracional mesmo. Mas as melhores coisas dessa vida não têm muita razão.

Ninguém questiona um parto de poucas horas, diante de uma gestação de nove meses. Ou um desabrochar de uma flor, que só vai durar um dia, necessitando, para isso, que toda a planta cresça a partir da semente.

Ninguém questiona os poucos instantes do gozo, que precisou de muito envolvimento, excitação, para chegar ao clímax de poucos segundos.
Ninguém questiona a morte, que é tão simples, e que se leva uma vida inteira para aceitar.

O Carnaval é assim: um ano inteiro preparando, ensaiando, comprando fantasia, criando samba, carros, alas, ornamentações, para se desfilar por pouco mais de meia hora e valer toda uma vida.

Mas você já desfilou? Não? Ah, é por isso que não compreende! Pois você precisa desfilar. É mágico. Alguma coisa muda dentro de você quando você está chegando na concentração, quando você começa a se vestir do sonho. Você deixa o sonho para entrar na fantasia – é, no mínimo, curioso.

Ali, no meio daquela gente toda, no meio da rua, colocando a roupa. Gente que você nunca viu vem lhe ajudar a dar os retoques, porque, no fundo, todos querem que a escola de samba se saia bem no desfile.

E você se deixa envolver por aquele ambiente. Se deixa não, você não tem outra escolha, você é invadido de brilho, de samba, de um amor estranho. Você é todo purpurina, em corpo e alma. Sua alma brilha um brilho esquisito. Uma alegria que não tem muita razão mesmo, mas que, indubitavelmente, faz você sorrir.

E aí você está pronto, todo cheio de luz, numa ala, arrumadinho, todos de mãos dadas. E não é só por querer não. Os diretores de harmonia organizam as alas dessa maneira. Todos se dão as mãos, mesmo que você nunca tenha visto seu companheiro de ala.

Engraçado, mas você pode estar de mãos dadas, de repente, com seu juiz, se você for o réu, ou com seu paciente, se você for médico, ou com seu assaltante, se você foi roubado, ou com um sem número de alternativas. Mas, naquele momento, você está de mãos dadas com seu irmão de samba e de escola.

E a bateria começa a estremecer o chão e a carregar de emoção um coração já castigado até então.

E o desfile começa.

Nossa! Ala a ala, você vê a passarela ir chegando, aquele povo todo gritando, sorrindo pra você, tudo luz, tudo cor, tudo som, tudo coração disparado. E, milagrosamente, os pés ensaiam uma coreografia conhecida – eles andam! E sambam! E fazem tudo certinho! E você não está nem aí! Nem repara o quanto está feliz, o quanto perdeu a noção de tempo e espaço, o quanto aquilo passa em câmara lenta.

É um narcótico! Você está drogada, pela droga mais potente de todas: FELICIDADE.

E o diabo é que está irremediavelmente viciada.

De entorpecida, você passa a traficante e precisa que os outros, na platéia, vibrem e sintam o que você está sentindo, e começa a incitar a audiência a se drogar com você.

Devia estar previsto em lei, haver legislação e pena para quem contaminasse os outros dessa maneira. Mas não há, portanto, a arquibancada e os camarotes, em comunhão, incorporam aquele sentimento (transitório para eles, porque vem logo outra escola atrás) de total e indecente bem-estar, levando você a entender que está nos braços de Deus.

E pensar que chegou-se a insinuar que Carnaval seria uma festa profana!

Mas como? Se ali, entre irmãos, se está com Deus, se atinge o Paraíso, o Nirvana?
Os brilhos passam como sinais de amor, os acenos e sorrisos são como a aprovação do bem, da emoção, da alegria. Vocês estão abençoados. São arautos da felicidade. E o samba penetra nos ouvidos como vozes de anjos. E o samba sai pela sua boca como melodias celestiais que têm o dom de encantar quem a escuta. E o seu suor, um banho de bênçãos, que vão lhe proteger da dor e amargura, enquanto ele durar, molhando o corpo.

Se você olhar bem para seu irmão do lado, vai ver o prazer estampado em suas feições. O mesmo gozo. O mesmo plano divino.

Para quem é espiritualizado, ali, naquela passarela, praticando atos considerados hereges, encontraremos um mar de almas iluminadas, de auras com mais purpurina que todas as fantasias do mundo juntas sob refletores. Ali, quem visse de cima, ficaria cego de tanta beleza, tanta luz, tanta paz.

Para quem é folião, aquilo é a glória. É um momento onde nada mais existe, a não ser a necessidade de mostrar ao mundo o quanto é Carnaval.

Aí você vai me dizer que tudo isso vai acabar na Apoteose, que amanhã é Quarta-feira, que a vida volta ao seu normal, e que foi um desperdício.

Ah, meu amigo, você nunca amou.

Você acha mesmo que, após terminado um amor, ele de nada lhe valeu? Que após a felicidade que ele lhe proporcionou, ele não lhe operou mudanças? Que depois de ficar extasiado com tanto sentimento nada de bom ocorreu com você?

Pois então, é por aí! Quando acaba, não acaba. Como o amor. Você vive em busca de amar. Não escolhe a quem, mas quer amar.

Pois é. Já está pensando no próximo ano, não é? Na próxima fantasia.

E então? É isso. É Carnaval!

E Carnaval é fantasia.

Carnaval é amor.

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Publicado por Lílian Maial em 16/02/2007 às 10h13



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