30/01/2007 19h51
UMA FAMÍLIA E DUAS HISTÓRIAS DE AMOR
®Lílian Maial
Por todo o mundo ainda persistem diferenças, sejam raciais, sociais, de credo, de idade, de sexo. O ser humano não é igual e gosta de se superar usando, para isso, as armas que tem, tanto mais sutis, quanto maior seu conhecimento.
Não querendo simplificar as coisas, diria que a condição de inferioridade imposta à mulher em todo o planeta vem se dissipando a passos de tartaruga, enquanto suas responsabilidades e atribuições vêm crescendo a passos de lebre.
Impossível esquecer que ainda hoje imperam, em inúmeros países, a submissão total da mulher, a castração ao nascer, os piores castigos para adultério e a clausura de certas “opções” religiosas.
Tudo isso é um prólogo para duas historinhas que pretendo contar, vivenciadas no seio da minha família, diametralmente opostas em termos de visão do companheirismo e da condição feminina, porém oriundas da mesma raça, do mesmo povo imigrante.
Meu avô paterno, nascido em Damasco, Síria, ainda muito moço veio ter no Maranhão, para cumprir os desígnios da família, que havia celebrado um pacto, junto a outra família amiga, quando do nascimento de seus primogênitos.
Vovô nunca havia visto vovó, então com seus 15 anos, filha de pai sírio e mãe francesa, e se quedou de amores à primeira vista, diante da indiscutível beleza, misto de raças muito belas, daquela menina pequena, branquinha, cabelos anelados e lábios finos, parecendo um bibelô, muito diferente das moças da terra natal de vovô, todas morenas, cabelos negros e lisos, porte mais graúdo.
Acontece que vovó era louca e adolescentemente apaixonada por um vizinho, e tomou ojeriza ao vovô, apesar do tipo muito bonito, cor de mouro, olhos profundos e penetrantes, sorriso largo e feliz, mas que não era o seu grande amor.
Nos dias atuais, entre nós, brasileiros, isso não seria problema, e vovô teria de se conformar em buscar outra boneca de biscuit. No entanto, nos idos de 1930, no Maranhão, filha de sírio, vovó teria de se conformar com o casamento, ou seria considerada morta para o pai.
Muito arisca e cheia de sonhos de amor, que se lhe foram implantados desde criança, vovó menina não se conformava em perder seu grande amor, porém não podia desobedecer ao pai e permanecer naquela casa. Então, secretamente, combinou com o rapaz amado de fugirem e se casarem escondido, num típico sonho shakespeareano.
No dia e hora combinados, vovó contou que reuniu poucas peças numa trouxinha e fugiu à noite, rumo ao local estabelecido para encontrar seu futuro. Disse-me que pulou janela e desceu por vegetação, numa ansiedade jamais sentida.
Chegando lá, seu amado ainda não havia dado sinal, e ela sentou pacientemente, contando estrelas e sonhando acordada.
Horas se passaram e a espera tornou-se cruel. Os pensamentos começaram a confundir-lhe, com o medo do rapaz ter sido descoberto, punido ou se acidentado. Até que percebeu que o dia já raiaria, e voltou para casa, pelo mesmo caminho que viera.
Para quem já entendeu, o rapaz nunca mais procurou vovó, que se casou com vovô e teve três filhos, sendo meu pai o do meio.
Vovô se estabeleceu e se tornou um comerciante de renome em Teresina, os negócios iam muito bem, até que a mãe de vovó adoeceu, e ela, grávida de meu pai, voltou para São Luiz, para cuidar da mãe que contraíra tifo. Em pouco tempo, vovó adoeceu, e meu avô, louco de amor e medo de perder sua amada, deixou tudo e foi ao encontro dela.
Conseguem todos se recuperar, mas, quando voltam, o sócio de vovô havia limpado todo o estoque, deixando apenas as promissórias das dívidas. Perderam tudo.
Sem dinheiro e com muito orgulho, vovô e família viajaram para o Rio de Janeiro, com meu pai ainda com seis meses de nascido, e tentaram recomeçar junto a um tio de vovó, que trabalhava no comércio. Nunca mais se recuperam, embora vovô tenha conseguido criar e educar bem os três filhos.
Vovó me confessou nuca tê-lo amado e nunca ter esquecido aquele rapaz.
Quase trinta anos depois, meu pai se apaixonou pela minha mãe, filha de pai cigano espanhol e de mãe filha de portugueses, uma boneca pequena, branquinha, lábios vermelhos, cabelos curtos e anelados, corpo esculpido por deuses, e passa a vida a adorá-la, a protegê-la, a amá-la, a tentar adivinhar seus sonhos mais secretos, e satisfazê-los.
Ela, por sua vez, ainda é apaixonada somente por ele, mesmo hoje ele já completando 24 anos de falecimento.
Ela foi companheira, guerreira, amiga, amante, mãe, irmã, enfermeira, gueixa, tudo para ele! Foram realmente muito felizes, e eu cresci vendo, todo Domingo, sem faltar nem um só, meu pai acordar bem cedinho, como de costume, em silêncio, para que ela não despertasse no seu único dia que podia acordar mais tarde (ela trabalhava inclusive aos sábados). Vestia-se, ia à padaria, comprava pão fresquinho, leite, fazia café, e preparava uma linda bandeja de café da manhã, sempre com uma rosa num vasinho solitário, com um bilhetinho de amor por debaixo. Ligava a mesma música por anos a fio, e abria as cortinas, quando o sol já ia alto, para despertar sua amada com música, flor e amor. A música era “Canção da Manhã Feliz”, interpretada por Miltinho.
Infelizmente, papai faleceu muito moço, vítima de infarto fulminante, e deixou minha mãe em profunda tristeza, ainda no auge da beleza e juventude. Ela nunca mais quis sequer olhar para nenhum homem, apesar de todo o encorajamento meu e de minha irmã, para que ela voltasse a ser feliz.
Ela dizia (e ainda diz), que não há um dia que não acorde ouvindo e vendo, em suas lembranças, a Canção da Manhã Feliz. E que é meu pai quem vai levar a bandeja com a rosa para ela.
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Publicado por Lílian Maial em 30/01/2007 às 19h51