O MUNDO SEM VOZ
®Lílian Maial
Deveria saber que bastaria o olhar. Deveria bastar o olhar... Apenas gestos, expressões, o ser humano prestando mais atenção ao ser humano, sua fisionomia, os sentimentos através do relance. Mas não é bem assim.
Foi preciso um silêncio compulsório, uma cirurgia nas cordas vocais, para perceber o quanto regredimos no quesito entendimento humano.
Ouvi dizer que a voz é a identidade da pessoa e a minha, não sem boas razões, vinha se perdendo no tempo, relegada a segundo plano. Assim que despertei, percebi que teria que resgatar tudo o que era “eu” e que estava anulado ou comprometido. E, assim, fui confiante em busca da minha voz.
Lembro-me que costumava cantar todos os dias desde que acordava, que ia cantarolando para o trabalho, o que provocava espanto em diversos colegas.
Hoje, quando paro para pensar que já faz um bom tempo que não canto ou ouço música rotineiramente na minha vida, fico boquiaberta! Já era hora de deixar a música e a palavra soarem livremente nos meus dias...
Operei e tudo correu bem. Contudo, deveria ficar sete dias sem proferir uma única sílaba, sob o risco de não alcançar uma boa cicatrização e ter o resultado aquém do esperado. Imaginei que fosse fácil, afinal, tantas pessoas sobrevivem sem voz, muitas com mudez desde o nascimento, por que eu não haveria de conseguir tarefa tão simples? Ledo engano! Como é difícil se fazer entender nos dias atuais somente com gestos e olhares! O ser humano desaprendeu a ouvir os olhos...
Munida de campainha, bloco, canetas, quadro branco e apagador, fui tentando me comunicar e constatar que é quase impossível se fazer entender frente a frente com as pessoas. No entanto, consegui manter diálogos virtuais nas redes sociais e me vi “tagarelando” pela internet, sem vibrar as desafinadas e rotas cordas do meu aparelho fonador.
Hoje, passados dez dias do procedimento, fui liberada para falar baixo e pausadamente, para ir exercitando as pregas vocais, até assumirem sua definitiva forma.
Curioso que meus filhos reconheceram, em mim, a mãe de outrora, numa alegria inexplicada, dessas de quem revê alguém que partira há muito...
Eu me senti revigorada, como se houvesse encontrado parte de mim, que se perdera nessa busca incessante por cacos nos estilhaços do cotidiano.
Interessante como um detalhe aparentemente simples pode provocar mudanças de atitude.
Hoje, com a nova/velha voz, percebo que estou mais forte, mais decidida, mais eu, como há muito não sentia.
Só lamento ter sentido na pele que a espécie humana esteja a cada dia mais virtual, mais idealizada e desaprendendo o que os bebês entendem tão cedo: a observação através do toque, a comunicação através dos gestos, dos olhos, dos sorrisos.
Sinto muito que a palavra não consiga ser soletrada com os sentidos e que o outro não valha mais do que uns garranchos numa folha de papel.
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