14/04/2010 22h14
HA CRIMES E CRIMES
Há crimes e crimes
- O julgamento da lei de anistia foi adiado sine die –
®Lílian Maial
Soube, por uma amiga, que o julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) da ação da OAB que contesta o artigo 1º da Lei da Anistia, que seria hoje, foi adiado e não há previsão de outra data.
Segundo Sonia Regina, o Supremo entende que a ação deve ser julgada com quórum completo – havia quórum mínimo.
Para a OAB, a lei "estende a anistia a classes absolutamente indefinidas de crime". Crimes políticos foram perdoados por essa lei. E também foi estendido o perdão aos agentes públicos que, na época da ditadura, abusaram da sua autoridade e poder contra os que se opunham ao regime. É o que está sendo contestado pela OAB, em suma: a anistia estendida aos que torturaram, estupraram e mataram - durante a ditadura -, considerando-os criminosos políticos. O que não são: esses são crimes comuns que, portanto, não têm esse amparo legal.
Como já havia escrito num outro artigo que fiz acerca da Revolução de 1964, não tenho memória própria, pois era pequenininha naquela época, mas através do que li e do que ouvi falar, e do que, mais tarde, compreendi que havia acontecido no meu país, não consigo entender como possa uma situação dessas ser tratada com tanto desdém e com tão pouca publicidade, num assunto sério e que diz respeito a todos nós.
A mídia faz tremendo sensacionalismo em casos de crianças e jovens assassinados, como recentemente no caso Nardoni, com comoção social e uma espécie de clamor de justiça, sem nem ter havido flagrante. Então por que não vemos o mesmo clamor, quando se trata do assassinato de inúmeros jovens? Meninas novinhas e rapazes na flor da idade, ricos em ideais patrióticos, foram maltratados das mais variadas e indescritíveis maneiras. E tudo fica por isso mesmo? Onde está a união da sociedade, a cobrança pela mortandade, pela crueldade revestida de “lei e ordem”? O silêncio, a indiferença, são as piores respostas de uma sociedade.
É um absurdo esse adiamento! Uma afronta à memória de tantos jovens ceifados da vida e de seus sonhos.
Subitamente me invade uma angústia, uma dor que não foi minha, mas que ainda é minha, que sempre foi minha. Um vazio, um vácuo, um limbo, que parece que nunca vai sarar.
O golpe de 1964 e o que veio depois não interromperam apenas o governo legítimo de um presidente eleito pelo povo, mas interromperam a história de uma nação, a evolução natural de toda uma geração, num momento em que o mundo aderia a uma nova ordem social, a um progresso inevitável de qualquer pós-guerra, mas, principalmente, desfiguraram a identidade do nosso povo, que nunca mais se acertou, pelo hiato de uma ou duas gerações de amordaçados, alienados e sem objetivos. O povo foi obrigado a conviver com a dor, com o silêncio, com a censura, com as injustiças, com a força.
Como poeta, escritora, mãe e cidadã, sinto a dor dos mortos, dos torturados, dos abusados pelo poder, das mães desesperadas, que só podiam chorar e imaginar as atrocidades pelas quais seus filhos - filhos da Pátria - estariam passando ou correndo o risco de passar, por uma luta idealista, pela volta da liberdade, por um futuro sadio.
Eu não vivenciei a época da ditadura no seu auge, porque era criança, mas pude perceber seus reflexos na ocasião da "abertura", quando do ingresso na faculdade, quando ainda se falava em X9 e havia medo entre os estudantes mais velhos. Eu era uma alienada - condição propiciada pela falta de informações, com a censura nos meios de comunicação, e por medo de meus pais, por conta de pessoas próximas que perderam familiares "desaparecidos", além do fato de minha mãe, na ocasião, trabalhar numa empresa de direção militar – e, com isso, cresci cantando "Eu te amo, meu Brasil", na voz de Dom e Ravel, sem ter a menor noção do que se passava nos porões da PE, pertinho de onde eu morava. Até hoje, quando passo na porta, ouço os gritos anônimos, as dores que nunca senti, a humilhação que nunca me foi imposta. E sofro. Um sofrimento globalizado, um sofrimento de quem tem uma consciência coletiva, amor ao país, ao irmão, aos direitos humanos.
A tortura é realmente a pior das maldades e arbitrariedades. O torturado fica à mercê da psicopatia e crueldade de quem detém o poder, sem nenhuma chance de defesa. Pode-se sentir cheiro de sangue, gosto de morte, fantasmas brasileiros que não têm paz, enquanto seus algozes escapam há décadas dos rigores da lei, protegidos pela alienação que nos impomos, pela inércia, pelo descaso e por sermos guiados pelo que manda a mídia.
A revolta nas ruas, nos bares, no supermercado, diante do pai que atira uma criança pela janela, não poderia ser menor que a de uma nação que viu seus filhos atirados de incontáveis janelas, asfixiados nos canos dos automóveis, seviciados, estuprados, feridos, humilhados, torturados de todas as formas inimagináveis. Não deveria ser menor que os que assistem seus irmãos sendo torturados pela miséria, pelo descaso dos governantes e pela absoluta falta de amanhã, pela distração que a mídia proporciona, alienando jovens e adultos na frente da telinha, num voyeurismo descabido, destruindo os neurônios do verdadeiro conhecimento.
O que podemos fazer para mudar esse painel?
Em matéria publicada dia 29 de março em Vermelho, Antonio Capistrano, ex-reitor da UERN, diz:
“(...) : os lideres nazistas foram condenados pelo Tribunal de Nuremberg por terem cometidos crimes de guerra. Não pelas mortes em combates, mas sim, pelas torturas e assassinatos cometidos friamente contra milhões de pessoas, a maioria de judeus, comunistas e maçons, mortos nos campos de concentração espalhados por diversos países da Europa, crimes esses praticados por europeus, arianos, de olhos azuis, e não por árabes, palestinos, iraquianos nem iranianos. O holocausto do povo judeu foi fruto da Europa Ocidental e Cristã e não do mundo árabe ou do mundo islâmico. Milhares e milhares de pessoas foram torturados e assassinados sem nenhuma chance de defesa, uma verdadeira barbárie. Em uma guerra, a morte em combate é diferente de um assassinato frio através da tortura de pessoas indefesas. A guerra já não é aceitável, imagine a tortura. Durante a ditadura militar, aconteceram fatos semelhantes aos ocorridos nos campos de concentração nazista, claro que em menores proporções, mas, no mesmo nível de crueldade. Não se pode perdoar o torturador. Tortura é um crime hediondo. (...)”
Minha amiga Sônia Regina questiona “como dissolver fronteiras geográficas se somos um dos únicos povos que não dissolveram seus próprios nódulos. Males vivos a serem extirpados com a ação que faltou: o julgamento e a punição desses crimes.
Ela reafirma que não se trata de ressentimentos. Aliás, seria um ultraje considerar tanta dor como simples ressentimento. Um desfecho não foi escrito. “Há uma lacuna em nossa história que precisa de um desfecho, para que possa, finalmente, passar a ser memória.”
De nada adianta a postura intelectualóide de comentar os fatos como se fosse passado, como algo que incomoda e que deve ser esquecido. Não! Será que de nada valeram tantas mortes de meninos e meninas, atirados pela janela da mentira por seus pais, os defensores da nação? Não podemos simplesmente aceitar o tempo passar.
Como disse num texto antigo, “as águas de março fecham o verão e trazem as cores de abril, e a promessa de vida em nosso coração. Caminhando e cantando e seguindo a canção, no fundo, no fundo, somos mesmo todos iguais, braços dados ou não. E eu, poeta, ainda acredito nas flores vencendo o canhão”.
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*foto do monumento "Tortura - nunca mais", na rua Aurora, em Recife
Publicado por Lílian Maial em 14/04/2010 às 22h14