Lílian Maial
A Paz voltou a Gaza.
Alguém acredita nisso?
Vemos a repetição do que acontece em toda e qualquer guerra, no intervalo (trégua): há que recolher, chorar e enterrar os mortos, contabilizar feridos e inválidos em plena idade fértil e ativa, buscar nos escombros os restos de vida e as lembranças de felicidade, combater doenças e pragas, e, irremediavelmente, se rearmar para novas ofensivas e defesas.
Por outro lado, o mundo que, há pouco, se agitava e se organizava para tentar deter o ataque, respira como que aliviado pelo fim do massacre, lentamente voltando à sua rotina, sem se dar conta que a maior guerra vem durante a trégua.
Precisamos continuar a pedir pela PAZ, sem o falso alívio das tréguas tênues, sem partido, sem buscar a razão, porque lá eles sabema razão, e cá, no fundo, nós também sabemos.
Agora que Obama foi eleito e já se posicionou, talvez as coisas acalmem por lá. Contudo, as incontáveis vítimas não verão mais a cor da esperança no mundo que os permitiu sucumbir ao forte armamento e à inércia de uma ONU sem nenhuma ingerência, desobedecida escancaradamente até bombardeada.
Como a poesia ainda é a melhor forma de divulgar os sentimentos, inclusive dos povos, aqui vão alguns exemplos, tanto do lado palestino, quanto do lado israelense:
Confissão de um terrorista!
Mahmoud Darwich
Ocuparam minha pátria
Expulsaram meu povo
Anularam minha identidade
E me chamaram de terrorista
Confiscaram minha propriedade
Arrancaram meu pomar
Demoliram minha casa
E me chamaram de terrorista
Legislaram leis fascistas
Praticaram odiada apartheid
Destruíram, dividiram, humilharam
E me chamaram de terrorista
Assassinaram minhas alegrias,
Seqüestraram minhas esperanças,
Algemaram meus sonhos,
Quando recusei todas as barbáries
Eles... mataram um terrorista!
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Em outro:
Chamada da Tumba
Mahmoud Darwich
Em memória do massacre de Kafr Kassem*
I
Minha morte aconteceu há oito anos
Tenho a mesma idade de meu pai
Chamamos a todos os viventes
A todos os que querem viver por muito tempo
Sobre a terra
Não debaixo dela
A todos os que querem
Que a trigo madure em seu campo
Semear e colher
Que a massa fermente em seus lares
Fazer o pão e comê-lo
Nós lhes pedimos: não durmam
Se querem viver por muito tempo
Sobre a terra
Não debaixo dela
Montem guarda... aqui o sol é de barro e miséria
Nossa idade se conta em anos de morte
Minha morte aconteceu há oito anos
Tenho a mesma idade de meu pai.
II
Dizemo-lhes
Não queremos sobre nossas tumbas
Nem água nem flores
Nada está vivo aqui
Apenas os casulos de víbora e os vermes
Dizemo-lhes
Não queremos roupas de luto
Não há na tumba outra cor
Que a preta
Dizemo-lhes
Não queremos canções tristes
Intermináveis
Dormimos aqui
E nosso retorno é impossível
Dizemo-lhes
Cantem pela terra que permanece
Rebelem-se
Ensinem nossa história sombria
Aos filhos
A fim de que nosso sangue
Permaneça na bandeira dos criminosos
Como sinal de catástrofe
Pedimos-lhes
Protejam os fracos das balas
Para que os que vivam fiquem salvos
E os que nascerão no futuro
Ainda goteja a fonte do crime
Obstruam-na
E permanecem vigilantes
Prontos para o combate
*Cidade convertida em santa após o massacre de 29 de Outubro de 1956.
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Carteira de identidade
Mahmoud Darwich
Registra-me!
sou árabe
número de minha identidade é cinqüenta mil
tenho oito filhos
e o nono... virá logo depois do verão!
vais te irritar por acaso?
Registra-me!
sou árabe
trabalho com meus companheiros de luta
em uma pedreira
tenho oito filhos
arranco pedras
o pão, as roupas, os cadernos
e não venho mendigar em tua porta
e não me dobro
diante das lajes de teu umbral
vais te irritar por acaso?
Registra-me!
sou árabe
meu nome é muito comum
e sou paciente
em um país que ferve de cólera
minhas raízes...
fixadas antes do nascimento dos tempos
antes da eclosão dos séculos
antes dos ciprestes e oliveiras
antes do crescimento vegetal
meu pai... da família do arado
e não dos senhores do Nujub¹
e meu avô era camponês
sem árvore genealógica
minha casa
uma cabana de guarda
de canas e ramagens
satisfeito com minha condição
meu nome é muito comum
Registra-me
sou árabe
sou árabe
cabelos... negros
olhos... castanhos
sinais particulares
um kuffiah² e uma faixa na cabeça
as palmas ásperas como rochas
arranharam as mãos que estreitam
e amo acima de tudo
o azeite de oliva e o tomilho
meu endereço
sou de um povoado perdido... esquecido
de ruas sem nome
e todos os seus homens... no campo e na pedreira
amam o comunismo
vais te irritar por acaso?
Registra-me
sou árabe
tu me despojaste dos vinhedos de meus antepassados
e da terra que cultivava
com meus filhos
e não os deixastes
nem a nossos descendentes
mais que estes seixos
que nosso governo tomará também
como se diz
vamos!
escreve
bem no alto da primeira página
que não odeio os homens
que eu não agrido ninguém
mas... se me esfomeiam
como a carne de quem me despoja
e cuidado... cuida-te
de minha fome
e minha cólera.
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1 Célebre tribo da Arábia
2 Lenço com desenhos quadriculados, usado para cobrir a cabeça e
que tornou-se símbolo nacional palestino pela liberdade e independência.
Originariamente, esse lenço é usado pelos camponeses para
protegerem a cabeça durante o trabalho no campo.
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E também, pelo lado judeu:
Mãe
Moshe Benarroch, poeta judeu
Onde vamos mãe?
Vamos para a nossa pátria,
Para o nosso país
E onde é o nosso país?
Não posso dizer-te o nome.
É proibido.
E fica muito longe esse país?
Fica do outro lado do mar, filho.
A viagem é longa?
Dois mil anos de distância
Três semanas de autocarro
Cinco horas de avião.
E como são as crianças desse país?
Todas Judias, como tu.
E eu como sou?
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singapura:
Moshe Benarroch, poeta judeu
Encontrei a Maria em Paris
ela vinha da Venezuela
e perguntou-me algo sobre o antisemitismo
expliquei-lhe o que era ser judeu na Europa
ou ser judeu numa escola francesa sob Vichy
e ela olhava-me como se falasse chinês.
Depois veio a Jerusalém
e frente ao muro da lamentações
contei-lhe a história dos judeus
desde Abraão até aos gregos, aos romanos,
aos árabes
e ela continuou a olhar-me
como a um extraterrestre.
Ela não discutia nem procurava compreender
o antisemitismo
simplesmente tudo lhe parecia uma loucura
vinha de um país onde não existe tal palavra.
Desejo conhecer mais pessoas como ela
olhando-te como se fosses louco
quando tentas explicar o ódio.
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A VIDA JUNTO DA MORTE
Yehuda Amichai. poeta israelense
A vida junto da morte
na carcaça de um carro à beira da estrada
você ouve as gotas de chuva na lata enferrujada
antes de senti-las cair na pele do rosto.
Cai a chuva, salvação depois da morte.
Ferrugem mais eterna do que sangue,
mais bonita do que cor de labaredas.
O vento que é tempo, alterna
com o vento que é lugar.
E Deus
permanece na terra como um homem que sabe
que esqueceu alguma coisa
e fica
até lembrar.
E à noite você pode ouvir
como Maravilhosa melodia,
o homem e a máquina,
no seu lento caminho, do fogo rubro
para a paz negra
e daí para a história
e daí para a arqueologia,
e daí para um belo estrato de geologia.
Isso também é eternidade
como o sacrifício humano que virou
sacrifício animal e depois oração em voz alta
e depois oração dentro do peito
e afinal nem oração.
(tradução de Millor Fernandes)
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O lugar em que temos razão
Yehuda Amichai. poeta israelense
jamais crescerão
flores na primavera.
O lugar em que temos razão
está pisoteado e duro
como um pátio.
Mas dúvidas e amores
escavam o mundo
como uma toupeira, como a lavradura.
E um sussurro será ouvido no lugar
onde houve uma casa
que foi destruída.
(tradução de Nancy Rozenchan)
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As diferenças (infindáveis) permanecerão. A questão não é simples. O poeta palestino Rachid Hussein escreveu: “Os alemães mataram seis milhões de judeus, e, apenas seis anos depois, os judeus fizeram a paz com a Alemanha. Conosco, os judeus não querem a paz.”
Mahmoud Darwish (1941-2008) - Poeta palestino, testemunhou a destruição de sua aldeia, Al Birweh, durante a implantação do Estado de Israel, em 1948, e escreveu: “Vão! E levem daqui a morte de vocês!
O que precisa acontecer, para que queiram mesmo a paz?
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