Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Meu Diário
26/07/2013 18h40
DIA DOS AVÓS

Dia dos Avós

®Lílian Maial

 

Não cheguei a conhecer meu avô materno. O paterno, poucas vezes vi, mas, nessas raras ocasiões, lembro-me de sentir imenso carinho por aquela figura síria, austera e algo beduína, mesclada de ternura e pequenos gestos desajeitados de afeição. A língua não se fez barreira e guardei algumas palavras árabes de puro amor.

A avó paterna era sempre visitada na infância, geralmente com o encontro de tios e primos, em datas especiais, como Natal e aniversários.

Mas é da avó materna a maior lembrança de afeto e cuidado.

Vovó (de quem herdei o nome) era uma mulher simples, do interior, porém muito altiva, esguia, de uma beleza distante e fria, e de um coração tão grande, que eu cabia inteira nele! Coração esse que encurtou sua estada comigo, dilatado de tanto amor.

Nasci num período de muito aperto financeiro para meus pais e vovó foi morar conosco, para dar a assistência necessária ao bebê, que nascera com asma brônquica, crises intensas, numa época em que o tratamento era precário e sofrido. Ela era enfermeira, já um tanto adoentada, mas não vacilou em aceitar a proposta.

Mamãe fez de tudo para amenizar minhas limitações, impostas pela doença, e recorria a todo tipo de tratamento preconizado: injeções subcutâneas de adrenalina, nebulizações com maquinária rudimentar, tendas de oxigênio, até simpatias e rezas mamãe tentou! Por fim, vacinas dessensibilizantes, com doses diluídas cada vez maiores da(s) substância(s) que incitavam as crises, como poeira domiciliar e fungos, para que o organismo se defendesse dos agentes agressores.

Tais vacinas eram subcutâneas e diárias, o que implicava em trauma para uma criança de pouca idade.

Mas vovó não me deixava sofrer. Delicada, tranquila e carinhosa, me acalmava e garantia meu conforto, para que a injeção de todos os dias não fosse vista como ameaça ou algo a se temer. E também me ensinou a ler e escrever, antes de ir para a escola!

Quando eu contava com cinco anos, ela piorou muito da cardiopatia, sendo internada diversas vezes. Seu medo era muito grande de me faltar e eu ter de fazer as vacinas com alguém que não tivesse o mesmo cuidado e todo o preparo afetivo. Então, assim que retornou para casa do hospital, já sabendo que não resistiria por muito mais tempo, decidiu me ensinar todas as etapas da autoaplicação das vacinas. Me ensinou a ferver a seringa e as agulhas (eram de aço e não descartáveis), a tirar o frasquinho da vacina da geladeira, a passar álcool na borrachinha, a inserir a agulha e aspirar o êmbolo até à dose recomendada, que aumentava em 0,1ml por dia, e, por fim, a passar álcool na pele mais fina (prega do cotovelo) e aplicar de maneira subcutânea. Quer maior maneira de demonstrar amor que esse?

Ela me treinou bem. Em pouco mais de um ano ela faleceu. Eu não soube de imediato, mas já possuía a destreza de um adulto na aplicação das vacinas.

Num primeiro momento, meus pais acharam por bem não me contar a verdade, para não me causar trauma. Eu ainda não tinha seis anos completos, aceitei aquela hospitalização mais prolongada, por ela estar mais fraquinha.

Nunca mais precisei ir a um hospital para tomar vacina ou qualquer outro medicamento. As crises foram cedendo, até desaparecerem na adolescência. Mas a lembrança de minha avó me cuidando, me amparando e protegendo, essa nunca desapareceu. Até hoje, tantas décadas depois de sua morte, em momentos de aflição sinto o conforto de seu colo e abraço ao meu redor, e tudo parece mais calmo e menos assustador.

Minha mãe é uma avó muito orgulhosa dos netos e não pôde ser mais presente, por problemas de saúde.

Meu pai não chegou a ver seus netos, embora sonhasse com eles, antes mesmo de eu engravidar. Ele se foi cedo, mas também deixou seu legado de amor e carinho.

E é assim que me vejo, no futuro, como avó: presente, carinhosa, protetora e, se puder, divertida, alegre e brincalhona, muito amiga desses, que não deixam de ser o lado lúdico da maternidade, que não podemos dedicar tão somente aos filhos, pela obrigação da educação. Não vejo a hora de repassar todo esse amor que me foi ofertado, um dia.

Minha reverência a todos os avós, esses seres especiais que são cúmplices em nossas traquinagens, cozinheiras de mão cheia, matando nossa fome de guloseimas, enfermeiros e professores por tabela, criaturinhas de amor, que só quem teve pode entender!

Parabéns, vovós!!!

 

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Publicado por Lílian Maial em 26/07/2013 às 18h40
 
20/07/2013 19h19
INFERNO EM SALTO ALTO

INFERNO EM SALTO ALTO

®Lílian Maial

 

 

Há dias em que é melhor não levantar da cama, pular o calendário e esquecer a data.

Pois bem, num desses dias furtaram meu velho e querido celular. Sim, esse objeto dramático, que invade nossas vidas, guarda nossos segredos, escuta nossas mágoas, alivia nossa ansiedade. E ainda atende às nossas ligações. Ele foi feito pequeno, cada vez menor, para ser levado no bolso. Acontece que bolso está fora de moda, ainda mais em roupa de mulher. Então, para onde quer que eu vá, tenho que andar com aquele tijolinho falante nas mãos.

Estava eu no trabalho, com um copo e uma colher para lavar, em uma das mãos, e o celular na outra. Como não podia deixá-lo molhar, pousei cuidadosamente o aparelho sobre a bancada da pia, longe dos respingos, e tratei de cuidar do que tinha ido fazer.

Nisso, um velho conhecido me descobriu na copa e me chamou, com aquela alegria bem característica, exigindo, naturalmente, atenção e demonstração de afeto. Claro que eu me esqueci de pegar o celular e lá fui eu falar com o indivíduo, segurando o copo molhado, numa das mãos, e o talher, na outra.

Depois de um diálogo rápido, mas suficiente para me distrair, voltei para minha sala. Quando quis fazer uma ligação, dei por falta do celular. Veio aquele frio na espinha, de quem se vê diante de problemas e não quer acreditar. Procurei por tudo que foi lugar, refiz as ações dos últimos trinta minutos, voltei à copa, mas não mais o encontrei. Droga! Minha lista de contatos, minhas fotos queridas, meu aparelho sob medida! Liguei do telefone de uma colega, na esperança de que alguém o tivesse encontrado e guardado, mas quem o achou o desligou, denotando a intenção de não devolvê-lo. Droga! Será que no meu local de trabalho coabitam bandidos? Custei a me convencer de que havia sido furtada ali.

Bem, já que estava tudo perdido, agora era bloquear o aparelho e a linha. Feito isso, parti para adquirir novo celular. E aí é que começou o problema: meu antigo aparelho era simplesinho, basicamente só um telefone que também tirava fotos e tinha alarme despertador.

Na loja operadora da minha linha, o atendente, superatencioso, dizia, com toda a ênfase, que eu tinha pontuação para tirar um megacelular, um smartphone inteiramente grátis!

- Que inferno! Eu quero um igual ao meu que foi furtado!

- Não tem mais, senhora (cadê a senhora?), é ultrapassado, agora são todos modernos...

Já fiquei fula com esse “senhora”, com a vozinha arrastada, meio de deboche. E ainda me vem com a insinuação de que meu celular era démodé?

- Bem, já que não tem igual, então me veja um bem simples e de fácil manuseio.

- Ah! Senhora (caceta...), todos agora são de fácil manuseio, que até uma criança de colo consegue usar... (Já estava começando a gostar da criatura...)

- Senhora (porra, para!), este aqui é o mais simples, mas a senhora (é a mãe!) tem direito a um aparelho fabuloso e de graça! Este aqui, o mais sem graça, só tem câmera, teclado qwerty, touchscreen, internet, wi-fi, 3G, acesso a Skype, Facebook, Twitter, Instagram, correio eletrônico, play store e poucas coisas mais.

- Ele faz ligações telefônicas?

- Faz, senhora...  (merda, que saco!)

- E como funciona?

- Veja, é simples: a senhora (vou mandar esse sujeito pra PQP se falar senhora de novo!) toca na tela, escolhe o contato, o browser, checa a rede social, clica no ícone. Antes tem que completar a lista de contatos, mas ligar é facinho.

- E pra acertar o despertador?

- A senhora (Ah, não, não vou tolerar mais isso!) digita o número e salva (disse isso com a cara mais babaca que eu já vi).

- Mas como salva, salva onde?

- Bem, senhora (vou estrangular esse cara!), aí tem que ler no manual.

Gostei desse camarada, mas ele definitivamente não estará na minha lista de contatos...

 

Enfim, estava com um celular touchscreen... Pensando o quê? Nada mais de ficar ligando sem querer para qualquer pessoa pelo fato de o celular na bolsa encostar em alguma coisa. Que nada! Agora é tocar na tela e escolher a função...

Tudo ótimo! Imediatamente comprei capinha moderninha e espalhei a notícia para a família e amigos mais chegados. Estava novamente conectada! O carinha safado – o senhor - me ensinou a colocar uma senha de bloqueio de tela. Coisa chique. Alfanumérica, tá legal? Não é pra qualquer um, não... Perua de lei! E protegida por senha!

Saí da loja no salto alto, toda elegante, de smartphone. Até que o telefone tocou. E agora? Como é que faço para atender? O cara não me explicou como se atende essa geringonça, como se desbloqueia a senha! Só sabia me chamar de senhora pra cá, senhora pra lá, o sacana!

Apertei tudo que foi botão e nada. Som alto, todo mundo me olhando no shopping, como quem diz: - Porque a perua não atende essa porra de smartphone?

Já estava desesperando, pensando em jogar o dito cujo na primeira lixeira que avistasse, quando me veio a ideia de desligar o troço. No que toquei no botão de desligar, ele silenciou e apareceu um telefoninho verde na tela. Ouvi uma voz ao longe:

- Alô! Alô! Você está aí? (Era mamãe).

- Oi, mãe! Sim, sou eu!

- Porque demorou tanto a atender?

- Nada, não, mãe, é que meu salto quebrou...

 

 

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Publicado por Lílian Maial em 20/07/2013 às 19h19
 
22/05/2013 00h04
Sobre essas coisas que batem à nossa porta, sem mais, nem menos...

 

Sobre essas coisas que batem à nossa porta, sem mais, nem menos...

®Lílian Maial

 

 

É estranho ainda pensar em nós depois de tanto tempo. Inevitável, quando já se comemorou tantas e tantas vezes a mesma data, que se anseia por ela, contando orgulhosamente os anos.

 

Vem aquela dor fantasma, que nem a que um amputado sente muito tempo depois da cirurgia. Não consegue entender o membro ou órgão operado. Sabe apenas que algo não está mais lá. E que dói, lateja, pulsa e não deixa esquecer que, um dia, já foi inteiro.

 

Esquisito por demais acordar pela manhã e precisar ocupar o dia de tarefas importantes, de atribuições imprescindíveis, de um cotidiano que não faz muito sentido, somente para passar o tempo, enquanto algo não acontece. Algo que não se sabe.

 

Lá pelo meio da tarde, quando as maritacas fazem algazarra e o dourado toma das folhas das árvores, nos damos conta da distração que foi o dia e do cansaço, sem muita explicação, sem exercícios, sem trabalho pesado, que se abate sobre nossos ombros. Um peso sem dor. Uma dor sem agonia. Uma agonia familiar, acostumada a incomodar sem muito estardalhaço.

 

Casa. Família. Cachorro. Noite. Novela. Internet. Mobília. Retratos. Velhas músicas e antigos livros. Mesmo endereço. Triste sina de passarinho.

 

Quem sabe não me bata à porta, dia desses, a simples libertação, numa surpresa que me traria alguma paz?

 

Não há como ter paz sem arrancar o espinho. Esse que fica cutucando a ferida de propósito. Essa gaiola de concreto, imposta pelo capricho do espinho que espeta e também se fere, pela simples necessidade de se fazer presente em dor.

 

Dia desses há de bater à porta a liberdade: azul, definitiva, suave e perfumada...

 

 

Hora de acordar e perceber que o dia já vai adiante, tantas coisas por fazer, o tempo urge, ruge e foge. Não era sonho mais uma vez. Preciso preparar o café da manhã do meu filho.

 

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Publicado por Lílian Maial em 22/05/2013 às 00h04
 
21/02/2013 17h07
NATURALMENTE

NATURALMENTE

®Lílian Maial

 

De súbito, a pele cobriu-se de nódoas, tornou-se áspera, escurecida, com rachaduras. Imaginou uma série de doenças, exposições a materiais os mais diversos. Nada sentia, a não ser uma necessidade premente de sol. Ele a revigorava! Estava viva! Mas aquela pele...

Depois foram os cabelos. Uns fios esverdeados, bem no meio da franja densa, davam-lhe um aspecto jovial, com certo toque “punk”. Criou imediatamente penteados sofisticados, exóticos, fazia sucesso por onde passava.

Até aí, tudo bem. Só que, tempos depois, começaram a brotar raízes de seus pés. Logo no início, conseguia esconder nos sapatos. Em pouco tempo, no entanto, onde encostasse ficava grudada, enraizada. Precisava se movimentar o tempo todo.

Entrou num misto de curiosidade, desespero e orgulho. Estava frondosa! Os braços iam esticando e afinando, galhos e mais galhos de envolver, alguns cipós pendurados. Jogava-os para o lado, num ar “blasé”. A cabeleira clorofilada caía-lhe pelo pescoço, vinha uma imensa necessidade de oxigenar, fotossintetizar, orvalhar!

De suas veias jorrava seiva. De seu púbis nasciam botões de flor. Desejo intenso de polinização. Certo dia, um beija-flor atrevido roçou-lhe as coxas e sugou e sugou e sugou. Não cabia em si de felicidade! De cada beijo da esplendorosa ave, um fruto nascia-lhe do ventre. Frutos e mais frutos, cada qual mais suculento.

Completa e plena fixou morada. Nunca mais se soube dela. Há quem diga que, debaixo daquela árvore, quem adormece sonha sementes.

 

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Publicado por Lílian Maial em 21/02/2013 às 17h07
 
31/01/2013 13h44
HUMORES

 

HUMORES

® Lílian Maial

 

 

Tenho que reconhecer que meus humores são os maiores responsáveis pela minha percepção do estado das coisas. Estou sempre em alerta, à espera, alimentando a visita do inesperado, aquele alumbramento, que enche o coração e não deixa brecha para o tempo.

Há dias de aguardar em paz, de cuidar do espaço, como quem prepara a morada do novo habitante. Em outros, porém, percorre a espinha uma sofreguidão de anseios, uma premência de vontades, no fundo, um vazio pulsando ocupação. São eles, os humores, neurotransmissores, ou seja lá que nome tenham!

Sou assim desde criança. Mamãe dizia que era “bílis”. Papai entendia melhor, tinha as mesmas sensações, permeadas por rompantes, que a minha infantilidade não permitia.

Desde o primeiro momento, quem sabe a visão da luz, no parto, ou, mais adiante, a saciedade do aleitamento, o que importa é que esse encantamento se repita, que se eternize. Possivelmente eu tenha descoberto a origem do significado de saudade. Ou, até mesmo, o êxtase da droga, sem nunca tê-la experimentado. Não seria o amor – essa satisfação da saudade – a mais potente e viciante droga?

Meu corpo precisa mais e mais desse sal, desse princípio ativo que me causa irrequietude e preenchimento.

Meu peito se inunda dessa química toda, que faz com que eu não esqueça, que eu vibre, que eu bombeie energia.

Minha mente explode nessa poesia, que racha as comportas e transborda de mim e em mim.

Hoje é um desses dias de colecionar versos e rasquear ideias.

 

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Publicado por Lílian Maial em 31/01/2013 às 13h44



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