Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Textos

E O MEU MENINO SAIU DE CASA...

E O MEU MENINO SAIU DE CASA...
                Por Lílian Maial



Acordei com aquele telefonema, uma tal Dona Miriam, falando todos os “S” que tinha direito, num sotaque tipicamente paulista.
A princípio, talvez pela sonolência, que insistia em manter minha mente confusa, achei que fosse engano, que a ligação havia caído errado, até que ela falou em ITA.
Dei um pulo de onde estava, tratei de acordar à força, apurar a audição e prestar atenção ao que ela tentava me dizer:
- “A senhora é a mãe do Gabriel?”
- “Sim, eu mesma, do que se trata?”
- “Aqui é do Centro Tecnológico Aeroespacial, de São José dos Campos, para informar que seu filho deverá se apresentar ao ITA, no dia 23 de janeiro, para escolha do alojamento.”
- “Mas que alojamento, senhora?”
- “O local onde ele deverá passar os próximos 5 anos, mãe.”
- “Desculpe-me, dona Miriam, mas do que a senhora está falando?”
- “Ora, senhora, seu filho foi aprovado no ITA! A ligação é para informar que hoje estou postando um envelope com todas as informações para inscrição, documentos, normas, enfim, tudo o que ele vai precisar para regularizar a situação de aluno da ativa, conforme opção dele no vestibular.”

Aquelas palavras ecoaram por alguns instantes. Um frio na espinha percorreu ligeiro toda a medula, congelando meus sentidos. Não sabia se ria, se chorava, se gritava, se morria. Fiquei imóvel, lágrimas nos olhos, que nem boba, agradecendo à tal dona Miriam pelas palavras mais abençoadas dos últimos tempos. Sim, porque aquele menino merecia, e muito, aquela vaga.

Ele sempre fora um garoto diferente da média: calmo, quase sem agressividade, amigo, bom desempenho escolar, nunca deu trabalho em aspecto algum. Lembro-me que havia pulado um ano ainda na pré-escola, ano esse que veio a trazer-lhe algumas amargas lembranças, pela imaturidade emocional e a diferença física para os meninos mais velhos. E, como se sabe, crianças costumam ser cruéis. Mas ele, com a nossa ajuda, ultrapassou tudo com muito amor. Desde novinho aprendera a vencer dificuldades.

Na ocasião das opções de vestibular, ele sempre fora categórico: queria ser engenheiro, e queria ser militar, ou seja, ou IME, no Rio, ou ITA, em São José dos Campos - SP. Tanto assim que, além dessas duas instituições, apenas se inscrevera na UFRJ e na UERJ, nada mais.
Naquela primeira tentativa, passou na UERJ, na UFRJ, mas não passou no ITA e chegou a passar no IME, mas não conseguiu a classificação dentro das 30 vagas para a ativa. Ficou triste, mas não desistiu.
Quando a maioria dos garotos de sua idade teria cursado a UFRJ, que é ótima faculdade, e curtido as praias, festas, namoradas e amigos no tempo que sobraria, ele não. Começou a cursar a faculdade pela manhã, mas ia direto para o curso preparatório, turma especial IME-ITA, à tarde e à noite. Saía de casa às 7:00 e voltava às 21:30 horas, exausto, com fome e sono.
No meio do ano, percebeu que não conseguiria vantagem sobre os que cursavam, em horário integral, a turma especial, uma vez que perdia aulas importantes. O dono do curso, engenheiro apaixonado por lecionar, ligou para nós, pedindo que autorizássemos o moleque a trancar a matrícula na faculdade, para dedicação exclusiva ao curso, pois ele, professor experiente na área, via grandes possibilidades de aprovação do menino.
Inicialmente o pai relutou, afinal, a UFRJ havia sido a nossa faculdade, de fama e qualidade inquestionáveis, mas o que o garoto queria era outra coisa. Assim sendo, para não atrapalhar os planos do filho, consentimos com a aparente loucura.
Dessa forma, vimos o menino feliz, dedicando-se integralmente aos estudos do cursinho, completamente desligado de outras atividades comuns aos jovens de sua faixa etária.
Chegou a época das provas, aquele sofrimento, aquela ansiedade. O menino vinha de cada prova com um ar irritante de incógnita, sem querer cantar vitória, com medo da decepção. Nada dizia, a não ser um lacônico “vamos aguardar”.
Depois da última prova, ele relaxou, caiu na merecida farra com os amigos, passava pouquíssimas horas em casa.
Fazia planos, pensava na vida militar, imaginava-se dentro dos prédios do IME (ele achava o ITA mais difícil, opção remota), nos laboratórios, mas tudo em silêncio, ele com ele mesmo.
Veio o resultado do IME: eram 30 vagas para a ativa, ele havia ficado em 42º lugar. No ano anterior, ele ficara em 68º, e até o 46º houve reclassificação. Veio uma enorme sombra nos seus olhinhos. Viu o gabarito e soube-se injustiçado na prova que mais sabia, a de química. Decidiu-se por pedir revisão (um absurdo de R$50,00 por questão) de cinco questões que tinha certeza que havia acertado mais da metade, e que nada havia sido considerado.
Levou o gabarito e sua prova para os professores do curso que, unanimemente, o orientaram para a revisão, garantindo que ele conseguiria média para entrar, com a nova nota.
Durante a revisão, os professores foram categóricos em manter a nota, sem maiores justificativas. Quando saiu o resultado, de 42º ele passara a 43º. Tiro pela culatra. Assim mesmo não desanimou, lembrando-se que muitos dali passariam e optariam pelo ITA, que ele ainda teria chances no IME dos seus sonhos.

E aí veio esse telefonema dessa tal dona Miriam. O meu menino, apesar das injustiças, das intempéries, das adversidades, havia conseguido, por mérito próprio, sem nenhuma deferência, a vaga no local mais difícil, que ele mesmo não imaginava que conseguiria. Foi a coroação do esforço, da responsabilidade, da determinação, do caráter bem formado. E eu estava radiante, com a sensação de “missão cumprida”, a certeza de que havia dado a melhor criação possível.
Mas, apesar de toda a felicidade e orgulho, veio de pronto o pensamento: “e agora, o ITA é em São Paulo, serão 5 anos longe de nós, longe de mim!”.
Mesmo sem querer, essa coisa de mãe, por mais liberal, desprendida e moderna que a gente seja, nunca se está preparada para esse corte total do velho e bom cordão umbilical. Como o menino iria sobreviver sem os cuidados, sem o zelo, sem o carinho da mãe?
Tudo bem, não sou lá mãe de ficar pegando no pé, até mesmo porque eu própria tenho minhas atividades profissionais e pessoais, das quais não abro mão. Sou independente demais para ter um temperamento aprisionador de filho. No entanto, nunca havia me separado antes dos meus filhos, nunca os havia soltado tanto e por tanto tempo. De certa forma, eles sempre estiveram ao alcance dos meus olhos, embora não debaixo das minhas “asas”.  Agora o moleque iria para longe, habitar um local estranho, com pessoas estranhas, sem os cuidados básicos dos familiares. Como será que ficaria por dentro? Teria carências? Teria solidão? Teria saudades? Teria dores, doenças, conflitos? Será que se adaptaria à vida militar? Seria perseguido por alguém, por algum monstro de setecentas cabeças? (sim, porque sete, a essa altura, não dariam conta dos fantasmas que me rondavam).
Bem, liguei para o pai, os avós, os amigos mais próximos, e ele, o principal interessado, não sabia ainda, pois não estava em casa. Quando soube, veio correndo me abraçar, com os olhinhos mais brilhantes do mundo.
Foi a recompensa pela escolha, pela vitória da vontade sobre as tentações da preguiça e da lei do menor esforço. Ele sabia que havia vencido, que podia, que era. Sabia que estava com o futuro garantido, seguro, fazendo o que escolhera. Batalhara por aquilo, merecia saborear com calma. E seus olhos me diziam tudo isso e muito mais. Sua alma repousava sobre a minha, num descanso que só os anjos conhecem. E eu partilhei daquele momento em silêncio, emanando um calor doce, com cheiro de fralda e loção de bebê. A memória me trouxe de presente os flashes organizados, como num filme, da minha vida com ele, desde a espera de 9 meses, até à espera desse dia. Caminhamos juntos por segundos, naquele caminho de amor.

Nova etapa: preparativos para a separação. Não tinha jeito, ele estava decidido, embora a reclassificação para o IME ainda não tivesse saído. Daí, já que ia mesmo, que fosse da melhor maneira.  Separamos os documentos solicitados, cuidamos de roupas, apetrechos pessoais, enxovalzinho, como se fosse mudar para viver sozinho. Engraçado é que eu vibrei tanto, como se estivesse escolhendo coisas pra mim mesma, para me mudar, para iniciar uma nova vida. Por várias vezes me peguei escolhendo coisas para mim. Não sei se é egoísmo, se é autodefesa, se é vontade de dar o melhor.
Na véspera da ida para São José dos Campos, recebemos um telefonema do IME, convocando o Gabriel para apresentação. Ele havia, enfim, sido chamado para ocupar uma vaga na ativa. Tinha conseguido os dois, ITA e IME! Estava em suas mãos agora a escolha.
Ele não titubeou. Já estava decidido. Assim, declinou gentilmente do convite do professor que o chamou, e partimos para o Centro Tecnológico Aeroespacial – CTA, onde fica o ITA.
Lá chegando, assistimos a apresentação do Reitor, de alguns professores do curso de Engenharia, e instrutores militares do CPOR (serviço militar).  Fomos ao alojamento e tentamos transformar seu cantinho num pedacinho da nossa casa, para que não se sentisse completamente só. Arrumei seu armário, fiz sua cama, separei seus produtos de higiene, suas roupas (do mesmo jeito que ficam no seu armário na nossa casa), instalei os aparelhos básicos (ventilador, rádio-relógio), agrupei livros e pastas. Verifiquei que há previsão para telefone e computador no quarto, e a cabeça já começou a funcionar, mostrando que a distância poderia ser encurtada, de alguma maneira.
Até que chegou a hora de vir embora. Segurei bem a emoção, pois sabia que ele ficaria triste se nos visse tristes. O pai estava inconsolável. Curioso é que eles sempre foram meio antagônicos, mas se amam muito. Os irmãos, ainda confusos, não entendendo bem a despedida, como se não tivessem ainda se dado conta de que ficariam sem vê-lo por meses. Eu estava alegre, brincalhona, tentando minimizar e disfarçar qualquer sombra. Só eu sabia da dor.
Foi a volta mais silenciosa de uma viagem que já tivesse feito. Os olhinhos de despedida não saíam da mente.

Chegamos em casa diferentes. Faltava alguém importante. A casa parecia lamentar a ausência dele. As portas rangiam, as plantas estavam meio murchas, apesar de adequadamente hidratadas. A casa sentia saudade.
Ao desfazer a mala, encontrei peças de roupa dele, com seu cheirinho. Aí o coração não resistiu e encachoeirei camisetas e bermudas.
Passei 2 dias péssimos, sem notícias, até que ele escreveu um longo e-mail, contando sobre trotes, sobre seu exame médico, sobre o entrosamento com os amigos, e o quanto estava feliz e bem. Aquilo dissipou qualquer nuvem negra que meu coração estivesse alimentando. A partir daquele e-mail o dia ficou mais claro e alegre, e as cores voltaram.
Em menos de uma semana ele já havia instalado um telefone e conseguimos nos comunicar mais diretamente. A cada telefonema, menor a dor, menos saudade.
Soube que o danado vai fazer o sacrifício para estar aqui no meu aniversário. Vai enfrentar 6 horas de ônibus na sexta à noite, ficar o sábado e voltar no Domingo depois do almoço. É meu maior e melhor presente, que já estou desembrulhando desde agora.
Apesar da distância e da separação, sei que ele está bem e que, se a saudade apertar muito, tenho como arranjar um jeito de vê-lo e abraçá-lo. Em alguns momentos chego a sentir vergonha de sofrer por isso, pensando nas mães que dariam tudo para estar no meu lugar e poder dormir, sabendo que um dia, não importasse quando, ainda abraçariam seus filhos.  A essas dedico essa crônica, com todo o meu sentimento e respeito.



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Lílian Maial
Enviado por Lílian Maial em 23/01/2006


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