Lílian Maial

Basta existir para ser completo - Fernando Pessoa

Meu Diário
18/03/2007 20h00
O BODE VEXATÓRIO (EXPIATÓRIO?)
® Lílian Maial



Era uma vez uma montanha de ricos comerciantes e abastados figurões, ocupada por um grupo imenso de trabalhadores, compostos de gado dos bravos, resistentes, mas muito distraídos, ligados na aparência, no corpo, na educação dos filhos, num futuro melhor. Sua preocupação era tanta com seus próprios umbigos, que não percebiam que a qualidade do futuro dependia da atenção no presente, da memória, da história, da irmandade.
“O homem não nasceu para ser sozinho.”
“Homem nenhum é uma ilha.”
“Uma andorinha só não faz verão.”
Todas máximas, minimamente compreendidas pelos habitantes da montanha.
Quando esses moradores começam a pensar, se organizar e comentar muito determinados desmandos dos ricos senhores, seus comparsas tratam de trazer para a montanha atrações imperdíveis, promoções, descontos, eventos, pequenas neoliberações fiscais, e o gado imediatamente se volta ao umbigo, imaginando-se muito esperto (e experto), pois acabara de “levar vantagem” sobre os tolos “desatentos”.
Os ricaços também entendem de massa, e providenciam feriados prolongados, para alívio dos cansados trabalhadores daquela montanha de dimensões continentais; e quase todas as medidas devastadoras, coincidentemente, são tomadas às vésperas de alguns feriadões desses. Depois da volta da região dos lagos, cansados e felizes, quem há de se revoltar com alguma coisinha à toa?
Ao redor dessa montanha vivia um grupo de porcos e um grupo de bodes e cabras. Os porcos fediam, comiam lixo, misturavam-se ao lixo, eram o lixo. Mas sempre davam bons pratos para os ricaços. Por isso, para sua porcaria, era feita “vista grossa”, e esses porcos se infiltravam na montanha, chafurdando junto aos abastados senhores da montanha. Montanha essa que só existia graças ao trabalho árduo da população bovina produtiva.
Os bodes andavam em cima dos muros, porque nem eram trabalhadores inseridos, nem donos de coisa alguma, mas também não eram porcos e se recusavam a serem porcos, até por conta de uma estirpe diferente, de aspirações opostas, de noções de civilidade e irmandade, haja vista que os bodes e cabras sabem muito bem viver em sociedade caprina organizada, embora também fedessem eventualmente.
Pois bem, um belo dia os porcos são incomodados com lumas mudanças que lhes foram impostas (ou a alguns de seus membros) e decidem provar o poder, dar as ordens, falar mais alto, mostrar a que vieram. Só que, como são porcos, só sabem fazer porcaria, e não poderia ser diferente. Então, se utilizam de alguns abastados senhores para viabilizarem seu intento. E tais senhores “permitem” certas “regalias” ao porcos, para que eles ajam conforme lhes aprouver, uma vez que não querem perder as facilidades e delícias que tais porcos sabem muito bem proporcionar a eles, sem falar no certo “controle” que esses porcos fazem na sociedade bovina.
Mas e aí, como ficam os ricos senhores, sendo desmascarados pelos porcos, como os responsáveis por sua permanência e sua arrogância, perturbando a “tranqüilidade” quase que simbiótica dos trabalhadores da montanha? Por mais que haja vaquinhas de presépio, a sociedade bovina poderia, de uma hora para outra, perceber que é maioria, que tem o verdadeiro poder das massas, e virar o jogo...
Muito simples: os bodes! Basta eliminar alguns bodes e apontá-los como os verdadeiros porcos. Afinal, bodes mortos não falam, bode bom é bode morto, e também fedem, e ainda assustam as cabras cegas, e geram nos trabalhadores todo um ufanismo contra bodes, cabras, porcos e animais de toda espécie. Então o gado pensa que, eliminando todos os animais, assim os porcos não teriam como perturbar a santa paz dos homens-boi de boa vontade...
Esses bodes começam a ser eliminados, vestidos com mortalha de porcos, para alegria geral da montanha que, no dia seguinte da porcaria, já encontrara um apaziguador para sua ansiedade social e moral: o bode expiatório! Que vexame!
Só tem um problema: nem todos os trabalhadores são iguais, nem todo o gado gosta de presépio. Nem todos os boizinhos são castrados, assistem TV de maneira automática, sem juízo crítico, sem discernimento do que é empurrado goela abaixo e o que deve ser regurgitado. Há os touros, que pensam, ponderam, e percebem que os bodes foram usados para calar a boca da população montanhesa insatisfeita, que precisava de sangue de algum culpado, para voltar à sua “normalidade” de gado. E nada melhor do que bodes, que vivem junto aos porcos e não interferem com os ricos senhores e em com o gado – ou seja, não servem para nada!
Então os touros, que são poucos, tentam e tentam mostrar ao gado a verdade por trás de tanta porcaria, e tentam ligar os porcos aos senhores da montanha. É claro que há os senhores sem relação alguma com os porcos, mas que pecam por omissão, por aceitarem comer da carne vermelha, por fingirem não ver o envenenamento do gado, por se excluírem de culpa e, assim, se enxergarem acima do mal.
O clima é tenso na montanha. Aproxima-se a eleição dos novos senhores (entre eles mesmos), mas a aceitação da população trabalhadora parece ser importante, até para não gerar greves, passeatas e abalar a estabilidade da montanha.
Vaquinhas se assustam e aceitam logo o primeiro bode como culpado, para poderem voltar ao horário nobre, às novelas e aos BBB. O que é que aquele bode estava fazendo ali, onde foi fuzilado, bem na área dos porcos? Se moram lá, é porque gostam e usufruem... Certamente têm culpa no cartório, mereciam mesmo morrer.
Boizinhos se entusiasmam com a seleção canarinho, com a possibilidade de encherem a cara, fazerem sexo sem graça, baterem em alguém, contarem vantagens, matarem trabalho, e deixam alguns bodes pra lá, afinal, são bodes, ora! Se ainda fossem bezerrinhos, mas são bodes... argh!
E os touros, amordaçados pela falta de respaldo, de mídia, de oportunidades para expor seus pontos de vista, sem condições de sacudir essa vida de gado, esperneiam, bufam, dão chifradas, que fazem parte da sua condição taurina.

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Agora vamos falar sério, como disse Maria Rita Kehl, em seu artigo recente “A Morte dos Suspeitos”: alguém acredita que a rebelião do PCC foi realmente controlada pela polícia de São Paulo? Houve alguma evidência de que a quadrilha foi desbaratada? Quem estava por trás? Não quebraram o sigilo dos celulares das penitenciárias, para revelar os nomes de quem estava trabalhando para o Marcola aqui fora?
E agora, estamos preparados para novas investidas, novos ataques? Então estamos nas mãos deles? Caso mexam com eles, eles matam, invadem, fazem o que querem e o que não querem e temos que aceitar?
A matança em São Paulo ganhou os noticiários nacionais e internacionais, mas e a matança lenta e continuada do dia-a-dia das grandes metrópoles? E as mortes por encomenda? As invasões e expulsões de trabalhadores de suas residências nas favelas e periferia das cidades? Pessoas que passam a vida trabalhando para conquistarem algum conforto mínimo, de repente têm seus parcos bens confiscados pelo tráfico, são expulsos de suas residências com a roupa do corpo, isso quando não têm seus filhos mortos e suas filhas estupradas, ou levadas para a perdição, com a promessa de serem a “mulher do dono da boca” (geralmente mocinhas entre 12 e 14 anos).
Essas perdas nenhum jornal contabiliza. Afinal, não estavam invadindo o nosso jardim, não é mesmo (citando Eduardo Alves)? E se foram pegas essas pessoas, é porque “alguma elas fizeram”, como os bodes do texto acima.

Na verdade, estamos todos na situação do “cada um por si”, situação essa incompatível com a sociedade, uma vez que sempre precisamos e precisaremos do outro. Só que o outro está com medo de mim. O outro tem medo da polícia. A polícia tem medo da polícia (e dos bandidos). Não se consegue mais reconhecer quem é bandido, essa é a questão principal.

Então, fingimos que os suspeitos mortos tinham mesmo que morrer, que era sua sina de bode, que eram perigosos, que suas mortes trouxeram de volta a paz, e calamos a consciência acreditando nos noticiários da TV e no bom desempenho dos governantes e policiais, pobres policiais.

Vida de gado. Zé Ramalho já havia literalmente “cantado a bola”.
Enquanto isso, alguns senadores, deputados e vereadores cheiram o puríssimo pó da vitória nas urnas, assistem à Copa do Mundo de camarote na Alemanha, custeados pelo povo, assim como estrategicamente a final da Copa do Brasil ficou para depois da Copa do Mundo, porque o show tem que continuar.
Outro Big Brother Brasil entrou em cartaz, gerando uma renda de cerca de R$ 8.700.000 em ligações (por paredão), mais um bando de desempregados vai engrossar as calçadas como abrigo, meninos continuarão equilibrando bolas nos sinais de trânsito e o descaso de seus futuros toscos, meninas se confundirão com cachorras, meninos se confundirão com porcos, e tudo volta ao normal... afinal, na próxima Copa, o hexa é nosso!

* Lílian Maial é médica, escritora, poeta e brasileira

Publicado por Lílian Maial em 18/03/2007 às 20h00



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